A atriz em 1953 com o vestido de noiva que ganhou de presente de Eva Todor, cuja companhia de teatro o noivo integrava - Foto: Companhia das Letras/Divulgação 103z5t
Como ela se sentiu quando viu a anódina Gwyneth Paltrow ganhar um Oscar em seu lugar? Qual foi a sensação de atuar pela primeira vez ao lado da filha? O que ou por sua cabeça no momento em que o médico lhe disse que o marido tinha um tumor no pulmão?
Nada disso você saberá pela leitura de Prólogo, ato e epílogo, o livro de memórias de Fernanda Montenegro, escrito com a colaboração de Marta Góes e lançado pela Companhia das Letras. Mas percorrerá, ao lado da dona das lembranças, esses três (e muitos, muitos outros) episódios, à maneira dela.
Ou seja, eles serão vistos com um olhar generoso sem ser ingênuo e contados com uma dicção particular, que fortalece agens inesperadas e estabelece pontes entre elementos aparentemente divorciados.
Dedicado aos netos de Fernanda e aberto com a história da chegada de seus anteados italianos ao Brasil, o livro deixa claro, desde a primeira página, que a grande dama do teatro brasileiro enxerga sua história com a perspectiva de um antes, um agora e um depois.
As polpudas informações sobre os colegas com quem Fernanda dividiu os palcos são outro atestado de que a atriz vê sua carreira como produto de um contexto e um esforço coletivos. Embora o resultado seja absolutamente singular, e isso também ela não ignora.
O maior elogio a Fernanda Montenegro que Prólogo, ato e epílogo contém está na página 170 e consiste num depoimento escrito por Gianni Ratto (1916-2005) por ocasião dos 50 anos de carreira da atriz. Ratto afirma que “Fernanda é hoje, talvez, a única atriz que a cultura, filtrada por sua sensibilidade, torna independente de influências ou teorias transitórias, situando-a num plano completamente à parte no campo das grandes intérpretes-criadoras. Não se trata aqui de estabelecer se ela é a maior ou a melhor, isso não vem ao caso. O que eu quero dizer é que Fernanda é realmente um fenômeno a ser considerado isoladamente mais do que no contexto geral da arte teatral”.
E exemplifica, em 50 anos de palco, com uma única cena, da montagem de Eurídice, de Jean Anouilh, dirigida por ele em 1956, na qual a atriz não diz uma palavra, mas cria um “esplêndido e inesquecível momento, no qual ava no fundo do palco, alterando todo um clima dramático com uma simples parada e um olhar”.
Antes de chegar a esse ponto, as Memórias de Fernanda percorrem a história de sua relação com o diretor Gianni Ratto – como ela aprendeu a irar seu rigor incomum, como ele se tornou uma espécie de guru artístico para ela, Fernando Torres e seu Grupo dos Sete, como romperam a parceria profissional (num rompante de Ratto) e se afastaram. Não há referência a mágoas e ressentimentos, embora seja de se imaginar que, durante algum tempo, tenha havido um bom bocado de ambos.
E não é apenas no caso de Gianni Ratto que o livro deixa de se ocupar do lado sombrio das relações. Ao contar sua história, Fernanda preferiu ressaltar as construções, não as ruínas. Reservou palavras de afeto e gratidão para quem estabeleceu com ela belas parcerias profissionais (lembra “saudosa” os trabalhos feitos com Luiz Fernando Carvalho, no caso da TV) ou humanas (a Edson Celulari ela dirige “um eterno agradecimento” pelo “ombro amigo, a mão estendida” durante a turnê de Fedra, quando a saúde de Fernando Torres já cambaleava).
POLÍTICA
Prólogo, ato e epílogo cita as duas vezes em que Fernanda Montenegro foi convidada – e recusou – a assumir a pasta da Cultura na Esplanada dos Ministérios. Mas é sua atuação sobre o palco e nos bastidores da política cultural no período mais cinzento dos anos de chumbo que contém revelações surpreendentes, como a de um atentado de que ela foi alvo, em São Paulo, em 1979, durante a temporada de É... (Millôr Fernandes).
Suas relações com os dramaturgos Millôr Fernandes (1923-2012) e Nelson Rodrigues (1912-1980) estão contempladas, incluindo uma saborosa descrição de quanta insistência lhe custou arrancar do segundo, que se referia a ela como a “Musa Sereníssima”, o texto de O beijo no asfalto. Mas é uma comovente troca de cartas com o ator Paulo Autran (1922-2007), já no fim de sua vida, que dá a medida do afeto de Fernanda por seus pares, deles por ela e da aguda tristeza que é ver uma geração de artistas imensos se despedindo dos palcos e da vida.
Não só o adeus a Paulo Autran, mas também a morte precoce de Domingos Montagner (1962-2016) doeu em Fernanda, por ver se apagar um ator que “transmitia uma ‘transcendência’ de herança cênica”, que tinha “uma disponibilidade física que alcançava do palhaço ao rei” e estava “pronto para um Shakespeare, um Molière, um Gil Vicente”.
Não são poucas as vezes em que a trajetória de Fernanda Montenegro tem em Minas Gerais um ponto de destaque. Foi de um fazendeiro dono de terras em agem de Mariana que a família da atriz conheceu o primeiro gesto de hospitalidade no Brasil.
Vindos da Itália, em 1897, em busca de trabalho e riqueza nas fazendas de café de Minas, encontraram descaso, hostilidade e privação logo após o desembarque no porto brasileiro. E perambularam como retirantes, até que o fazendeiro de Minas lhes cedeu um pedaço de terreno, onde puderam se recompor – para mais tarde seguir viagem.
A persistência diante das adversidades e a disposição para buscar incessantemente construir para si uma história melhor marcam o Prólogo do livro e também a personalidade de Fernanda, que descreve com gosto sua origem e seus hábitos de juventude “suburbanos” e o orgulho de ser uma artista mambembe.
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Numa entrevista ao Estado de Minas, em julho ado, a escritora Marina Colasanti afirmou que “os 80 anos nos avisam que estamos chegando ao quilômetro final da maratona”.
Prestes a completar 90, Fernanda Montenegro escreve o Epílogo de seu livro com essa consciência e chega a uma conclusão digna de aplauso: “Tudo vai se harmonizando para a despedida inevitável. Inarredável. O que lamento é a vida durar apenas o tempo de um suspiro. Mas, acordo e canto”.
TRECHOS
A NOITE DO OSCAR
"Na noite da premiação, no Dorothy Chandler Pavilion, Ian McKellen, que também fora premiado pelo National Board of Review, voltando para o seu lugar depois de um break da cerimônia, aproximou-se de mim e, muito gentil, perguntou: 'Você sabe quem eu sou">Fernanda Montenegro com o marido, Fernando Torres, e os filhos Claudio e Fernanda, na Lagoa da Pampulha, em 1966 - Foto: Companhia das Letras/Divulgação