
"O aborto é um direito fundamental da autonomia da mulher", diz Barroso
Presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, ressalta que nenhum país desenvolvido criminaliza o aborto, e defende que as mulheres não devem ser presas por isso
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Por Ester Pinheiro, Carolina Oms e Joana Suarez
“Que tipo de política pública praticamos aqui com a criminalização [do aborto] que nenhum país desenvolvido adota"
O encontro de Barroso com profissionais do mundo todo para falar dos direitos das mulheres brasileiras fez parte de um Media Tour, programa organizado pelo Instituto AzMina em parceria com a Women’s Equality Center (WEC) e a International Women’s Foundation (IWMF). A iniciativa apoiou 7 jornalistas de diferentes países para contarem histórias sobre justiça reprodutiva, com foco em aborto legal e ilegal no Brasil, e, assim, difundir o tema globalmente.
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Na avaliação de Barroso, o aborto é um direito fundamental da mulher e faz parte dos direitos sexuais e reprodutivos. Citando particularmente como a criminalização afeta as mulheres pobres, o presidente do STF é a favor da descriminalização do aborto no país. Mas, antes de pautar novamente a discussão no Supremo - por meio da ADPF 442 -, Barroso acredita que é preciso esclarecer socialmente a percepção “equivocada” sobre o assunto. Leia a entrevista completa abaixo:
*Saiba mais sobre direitos reprodutivos e veja os dados atualizados na plataforma abortonobrasil.info , lançada em 2023 pelo Instituto AzMina com apoio do Instituto Anis de Bioética e organizações feministas do selo Futuro do Cuidado.
Sobre a descriminalização
Jornalistas estrangeiras: A descriminalização do aborto é uma pauta urgente?
Ministro Luís Roberto Barroso: Acho que é um assunto muito importante. Ainda assim, atualmente, acredito que a sociedade brasileira não tem plena consciência do que realmente está em jogo quando discutimos aborto. A questão não é se você é contra ou favorável ao aborto, mas: você acha que uma mulher deveria ser presa? Você acha que ela não deveria ter o direito de ir para o sistema público de saúde? É por isso que ainda não agendei esse julgamento, porque acho que deveríamos discutir isso na sociedade e fazer com que as pessoas entendam qual é a verdadeira questão em jogo.
O aborto deve ser evitado, ninguém acha que é uma coisa boa. Então o papel do Estado é evitar o aborto, dando educação sexual, distribuindo contraceptivos, e apoiando a mulher que queira ter um filho e que esteja em condições desfavoráveis. Dito isto, a criminalização do aborto é uma má política pública.
As pessoas precisam entender que você pode ser contra o aborto, pode optar por não fazê-lo, mas não pode querer colocar na cadeia essa mulher que teve que fazer ou queria fazer. Eu tento abrir esse debate com a sociedade brasileira, mas nem sequer tenho a certeza se a maioria do Tribunal apoiará esta posição. Em todos os países, os Supremos Tribunais podem tomar decisões contra majoritárias. Apesar disso acontecer, normalmente não o fazem, pois querem estar alinhados com a sociedade. Este é o tipo de preocupação que tenho agora.
Jornalistas: Considerando a complexidade do tema, quando a descriminalização pode ser uma realidade no Brasil?
Barroso: Não faço ideia. Depende desse debate se fortalecer e até conversar com os religiosos e fazer com que eles entendam a minha posição. Porque a percepção atual, de que quem apoia a descriminalização é a favor do aborto, é equivocada. Não é verdade, só é uma política pública ruim, porque impacta, acima de tudo, mulheres pobres.
Alguém dirá: “não são muitas mulheres que são condenadas por aborto”. Existem alguns casos, porque eu já dei habeas corpus para uma mulher que estava presa. Porém, a principal consequência da criminalização é que as mulheres pobres não podem ir ao sistema público de saúde para obter assistência, [ar] o procedimento, informações e medicamento adequado. Então o que acontece é que elas tentam fazer isso sozinhas, comprometendo a saúde, e há casos de pessoas que morrem em decorrência de procedimentos feitos indevidamente.
Tenho alguns motivos para ter a minha posição, primeiro, acho que é um direito fundamental da mulher. Segundo, que pesquisas mostram que a criminalização não diminui o número de casos de aborto. Isso é muito injusto com as mulheres pobres porque se você tiver dinheiro, como pessoas da classe alta no Brasil, é possível ir para um país onde o aborto é legal, ou onde há clínicas privadas que fazem, ou podem ter o aos medicamentos adequados.
Sobre educação sexual e desinformação
Jornalistas: Que tipo de política pública deveria ser tomada uma vez descriminalizado o aborto?
Barroso: Não cabe a mim decidir. Como juiz e como cidadão, o que eu gostaria de fazer é educar as pessoas sobre como evitá-lo, porque muitas gravidezes resultam provavelmente de ignorância. Penso que a educação sexual é fundamental, mas quando se trata o aborto como um tabu, até a educação se dificulta.
Jornalistas: No Brasil, existem restrições até mesmo no compartilhamento de informações sobre aborto, o Cytotec (medicamento seguro para fazer o procedimento), gerando muita desinformação e confusão. Como resolver isso?
Barroso: Compartilhar ideias nunca deveria ser ilegal. A Suprema Corte decidiu que você pode até fazer campanha pela criminalização da maconha. Então, é claro, você pode fazer campanha pela descriminalização do aborto e até mesmo compartilhar seus motivos.
Quando eu era advogado, fui o primeiro a ter um caso de aborto, era um aborto para um feto inviável. Mesmo isso sendo ilegal na época, em uma decisão difícil, conseguimos, por 7 a 4 no tribunal, permitir que uma mulher fizesse um aborto de feto anencéfalo. Isso foi um grande debate na sociedade brasileira, houve muita pressão e oposição de grupos religiosos. Me parecia bastante óbvio e era totalmente inaceitável fazê-la ficar grávida mais 6 meses desse filho ou filha que não era viável e ela não queria ter.
Esse é um assunto que toca sentimentos de religiões, por isso eu disse que precisamos discutir isso com as pessoas, porque não quero fazer algo que vá machucá-las. Meu objetivo é que entendam o que está em jogo e acredito que poderão entender.
Sobre a influência religiosa
Jornalistas: O que você acha dos casos de habeas corpus para impedir o aborto legal e dar aos fetos os mesmos direitos que os cidadãos (Estatuto do Nascituro)?
Barroso: O Código Penal brasileiro permite o aborto em caso de estupro e em caso de risco à vida da mulher, e não há dúvida de que nesses dois casos o aborto é legal e válido. Não acho que teria chance um habeas corpus a favor do feto nas situações em que o aborto é legal, isso já seria uma ilegalidade.
Em outros casos, como é ilegal, você nem precisa de habeas corpus. Se isso acontecer, e você tiver um processo criminal, poderá encontrar juízes que pensam como eu: que a lei [que proíbe o aborto voluntário] simplesmente não condiz com a Constituição. Penso que [o aborto] é um direito fundamental da autonomia da mulher e dos seus direitos sexuais e reprodutivos. Mas, não tenho a certeza de que essa seria a posição da maioria dos juízes.
Sei que nos Estados Unidos houve um retrocesso, mas o Canadá não criminaliza, mesmo na América Latina, o México, a Colômbia, a Argentina. Na Europa: a França, a Holanda, mesmo os países mais católicos, Espanha, Portugal e Itália não criminalizam.
Jornalistas: O lobby religioso no STF não influencia de alguma forma a decisão sobre esse assunto?
Barroso: Acho que muitos grupos, como o agronegócio, têm seus representantes, assim como a religião tem seus representantes e os demais trabalhadores têm os seus. Meu objetivo é tentar abrir a mente das pessoas para a questão real. Não é apoiar o aborto, é proteger as mulheres, especialmente as pobres.
Claro que muitas pessoas pensam que desde a concepção o feto é uma vida e por isso são contra. Esta é uma convicção e crença religiosa e filosófica, e tudo o que você pode fazer é respeitá-la. No entanto, as pessoas que não pensam como você, deveriam ter o direito de agir de maneira diferente. Não quero derrotar as pessoas que pensam diferente, quero fazê-las ver que existe uma maneira melhor de ver isso.
Sobre governos "conservadores"
Jornalistas: Quão mais difícil é aprovar leis sobre aborto num governo conservador?
Barroso: Acho que a discussão é difícil, independentemente de quem está no poder. Quando a presidente Dilma era candidata e José Serra concorria em oposição, ambos fizeram declarações contra a criminalização. Mas quando a campanha eleitoral começou, os dois meio que recuaram da posição anterior porque a sociedade brasileira em relação a esse assunto é conservadora.
Jornalistas: Como a reversão do caso Roe vs. Wade nos EUA afetou o debate sobre o aborto no Brasil?
Barroso: Não foi uma reversão total da Roe vs Wade, porque agora o poder é devolvido aos estados, que podem decidir. A maioria dos estados dos EUA ainda permite o aborto. Mas, o que acontece com os EUA, afeta o mundo inteiro, porque tudo o que acontece lá é notícia onde quer que você vá. No Brasil, as pessoas que são contra dirão “até os EUA estão contra”. Eu não dou muita importância a isso porque quando era permitido nos Estados Unidos eles não diziam “se eles permitirem lá, deveríamos fazer isso aqui”. O que me impressiona é que um país democrático criminalize.
Jornalistas: As vítimas de estupro são solicitadas, nos hospitais, a apresentarem o boletim de ocorrência, e não são atendidas, mas a legislação não exige isso. A lei atual protege mulheres e meninas para terem o ao aborto legal no Brasil?
Barroso: Uma mulher que vai ao hospital e diz “fui estuprada” deveria ter o ao aborto. Acho que há mais fardo do que deveria nisso.
Sobre ser justo e feminista
Jornalistas: O que faz de você uma pessoa feminista [considerando que você já se descreveu como tal]?
Barroso: Eu simplesmente gosto de ser justo, e acho que ser justo é ser feminista. Há uma grande evolução na legislação brasileira e na sociedade em relação à liberdade sexual das mulheres, ao o das mulheres ao local de trabalho e ao papel da mulher no casamento. Na legislação brasileira, o homem estava à frente no casamento, ele poderia assumir todas as decisões da época, mas a Constituição [de 1988] mudou isso e eu apoiei. Votei a favor do financiamento de campanhas de mulheres quando elas concorrem a cargos legislativos.
As pessoas mais próximas que trabalham comigo são mulheres: a minha Secretária-Geral no tribunal e a Secretária-Geral no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Acho que elas trazem um valor especial à vida pública. Aprovamos uma regra no CNJ que diz que no nexus para os tribunais superiores você precisa alternar, se você promoveu um homem, a próxima vaga precisa ser uma mulher, e essa será a regra até termos 40% de mulheres nos tribunais superiores.
Deveríamos ter sempre que possível metade mulheres e metade homens. É uma questão de justiça de gênero.
A reportagem original pode ser ada no site d'AzMina.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.