
O caminhão de porcos: 'uma metáfora que nunca esqueci'
Seria nosso destino semelhante ao dos porcos da fazenda Europa? Seríamos todos levados, aos solavancos, para o abatedouro político e social
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Aos 11 anos, fui apartado do meu ninho em Ibiá. Minha infância de pássaro livre foi interrompida quando segui para Belo Horizonte, rumo à casa do meu irmão, Marneu Starling, em 1970. Tempos de Copa do Mundo e do ufanista “Pra Frente, Brasil”. Tempos em que a euforia patriótica e a repressão andavam de mãos dadas, dançando o balé da censura e do terror.
Marneu, um brilhante economista e professor da Face (UFMG), havia encontrado no autoexílio acadêmico a forma de respirar. Fez seu PhD em economia na Universidade de Stanford após o golpe militar de 1964 e, de volta ao Brasil, participou da construção de pilares econômicos importantes, como o Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais, a Fundação João Pinheiro e o Cedeplar-UFMG.
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Na casa dele, vivi o turbilhão dos idealistas dos anos 1970. Um cenário tenso, como se cada palavra fosse uma bomba-relógio. As conversas eram medidas, vigiadas, como quem caminha sobre cacos de vidro. Se a atmosfera parecia um filme de suspense, Walter Salles captou bem essa vibração em “Ainda Estou Aqui”, do livro de Marcelo Rubens Paiva. Lá, aprendi cedo que as paredes têm ouvidos e que o silêncio, muitas vezes, é tão ruidoso quanto o grito dos torturados.
Marneu havia sido membro do Partido Comunista na juventude. Anos depois, como professor, desafiou o poder infiltrado, reprovando um grupo de militares no curso de Economia. Apesar das súplicas do reitor, ele se manteve firme. Sua recusa em ceder ao medo transformou-o em alvo permanente do regime.
Entre os personagens que gravitavam ao redor de Marneu, um me marcou profundamente: o Peruano. Figura misteriosa, ele aparecia de tempos em tempos na fazenda do meu avô, sempre com um sorriso generoso e histórias que incendiavam minha imaginação de menino. Foi ele quem tentou me ensinar a nadar, levando-me nas costas pela parte funda da piscina – para mim, um oceano intransponível e proibido. Ele era meu heroi, meu ídolo. Sempre que Marneu retornava de Belo Horizonte, minha pergunta era a mesma:
— Cadê o peruano?
A resposta ou a vir de forma evasiva: “ele tinha ficado para estudar”, ou “estava visitando os pais no Peru". Mas, o fato é que o peruano nunca mais apareceu. Muito tempo depois, a verdade emergiu como uma sombra que se recusa a desaparecer. O peruano era ativista político e, como tal, cassado pela repressão. Suas visitas à fazenda eram fugas disfarçadas, tentativas de escapar do abraço sufocante do regime.
Mas o destino foi cruel. Um dia, a polícia invadiu a república do Edifício Vila Rica, na Rua São Paulo, onde ele dividia apartamento com outros estudantes. Um a um, os jovens foram postos contra a parede, interrogados com uma pergunta repetitiva, inquisitiva e ritualística:
— Você é o peruano?
Todos respondiam taxativamente: “NÃO”. Mas, quando chegou a vez dele, o detalhe não traiu sua origem.
— Non.
Foi o fim. O peruano desapareceu para sempre, engolido pelos porões da ditadura.
Marneu, talvez como forma de refúgio, ou a dedicar-se cada vez mais à fazenda Europa, no Alto Paranaíba. Ele dizia, com um misto de ironia e verdade, que ava os fins de semana na “Europa”. Voltava às segundas-feiras, trajando terno e botinas – às vezes, ainda sujas de esterco. Esse gesto simples era sua declaração de guerra contra os economistas de asfalto, aqueles que desconheciam o cheiro do campo.
Durante nossas inúmeras viagens entre Belo Horizonte e Ibiá, no velho fusca vermelho, com seu rádio de verde e o icônico “puta que pariu”, único item de segurança do ageiro, ele contava histórias que muitas vezes escapavam à minha compreensão. Entre elas, uma metáfora que nunca esqueci: "Políticos no início de mandato são como porcos em um caminhão. Quando colocados juntos para transporte, a gritaria é ensurdecedora, um caos absoluto. Parece que não chegarão ao primeiro mata-burro. Mas basta o primeiro solavanco para que se acomodem. O silêncio reina até o fim da viagem. No destino, o silêncio é eterno. Não vale mais a pena gritar".
Essa imagem me assombra até hoje, especialmente na última semana, ao assistir, perplexo, o insano mais poderoso do mundo empunhar decretos como se fossem espadas, ao lado dos homens mais ricos do planeta. O espetáculo grotesco do motorista planetário negligente, ensurdecido pelos pedidos de clemência. Nem mesmo as palavras da intrépida bispa Mariann Edgar Budde, feitas em púlpito sacro, conseguiram atravessar o tubo auditivo do autocrata, agora mais empoderado do que nunca.
Seria nosso destino semelhante ao dos porcos da fazenda Europa? Seríamos todos levados, aos solavancos, para o abatedouro político e social, resignados ao silêncio? Seríamos reduzidos a uma mera linguiça no cardápio do poder?
Mas há algo que me recuso a acreditar. A linguiça planetária certamente encontrará um refúgio mais adequado para se acomodar. Nós, humanos, temos ainda a opção de rever nosso destino, mesmo que o motorista finja não ouvir. Assim, entre as lições da fazenda Europa e as ironias do mundo, resta-nos a certeza de que o próximo “mata-burro” está logo ali na curva do tempo, daqui há quatro anos. Assim espero.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.