“Fragile”, de autoria do compositor britânico Sting, compõe a trilha sonora do documentário “Adolescência”, recém-lançado pela Netflix. Um dos trechos, em tradução livre, diz o seguinte: “(...) E a chuva continuará caindo / Como lágrimas de uma estrela, como lágrimas de uma estrela / E a chuva continuará dizendo / O quão frágeis somos, o quão frágeis somos”. É nesse momento que o pai do adolescente que cometeu homicídio cai em si sobre o abismo frágil de suas (nossas) vidas.
Em 2017, assisti, juntamente com meus filhos, “13 Reasons Why”, uma série que retratava os 13 motivos que levaram uma jovem, de forma premeditada, a cometer suicídio. A jovem gravou sete fitas cassetes narrando tais motivos e as deixou para um colega de escola; a partir daí, desenrolava-se a trama. Embora o pano de fundo fosse o suicídio, as 13 razões envolviam bullying, consumo de drogas, alcoolismo, violência doméstica e sexual, saúde mental e falência educacional.
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ados oito anos, a Netflix lança a série “Adolescência” que traz algo tão profundamente chocante quanto o suicídio: o homicídio de uma jovem aluna por um colega de escola. A trama nos choca e nos paralisa! Escancara a falência do modelo consumista das famílias, sustentadas por uma estrutura de bem-estar, que impõe elevado padrão de consumo e impede que pais e filhos tenham uma relação mínima de proximidade, cumplicidade, trocas e contatos afetuosos mais íntimos.
A trama nos mostra a falência do ensino atual - um grave problema que os governos não sabem lidar e que parece ser, no mínimo, um desafio em todo o Ocidente. Não me atrevo a falar sobre o Oriente, dada sua complexidade de sistemas políticos, sociais e culturais, mas tendo a crer que seja um problema mundial. A trama nos mostra a falência do sistema de saúde, a falta de integração entre a saúde e a educação e o quanto as políticas públicas estão enxugando gelo.
As enormes cifras destinadas às pastas de saúde e educação – pautas aparentemente prioritárias para os governos –, não têm atingido o cerne do adoecimento, do desestímulo, da violência e da falta de empatia vivenciados por crianças e jovens da atualidade. Os governos fracassam, cada dia mais, ao não conseguirem mudar o “mindset” da política pública. Faz-me lembrar a música dos Titãs que dizia: “(...) a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”.
Os pais não alcançam o dano que o excesso de consumo tem provocado nas gerações dos smartphones e das redes sociais. Munem seus filhos de armas tecnológicas, constroem quartos com TV, PlayStation, rede wi-fi de alta velocidade – tudo para garantir que “o filho(a) esteja a salvo, em casa”. Ledo engano! Os pais estão conduzindo seus filhos a “viagens de Chihiro” – universos inimagináveis e iníveis que podem ser imensamente danosos e, por vezes, irreparáveis.
Colocar governos e pais no mesmo pacote é, pretensiosamente, simplificar um problema cujas raízes também envolvem o setor privado – em especial os bilionários donos das redes sociais que, ao que tudo indica, querem ver o “circo pegar fogo”. Alienados em sociedades de consumo cujo status tecnológico também nutre seus gozos narcísicos, os pais dão aos filhos ferramentas para viver em mundos cibernéticos paralelos e negligenciam criminosamente o ônus parental da educação.
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Na prática, os pais estão abandonando seus jovens e crianças e, com isso, transferindo o ônus da educação sobre a contabilidade das escolas. Na série Adolescência, os jovens estão o tempo todo grudados em seus aparelhos celulares e, no ambiente escolar, são hostis e desafiadores com seus professores. Nas redes sociais, por meio de códigos de linguagem e o a conteúdos inalcançáveis aos pais, são capazes de construir ambientes e relações violentas e perversas.
Há oito anos, pais e escolas foram tocados pela série “13 Reasons Why” e agora por Adolescência. A arte nos mostra o que não queremos ou não conseguimos alcançar por nós mesmos, mas que pode nos tocar e nos transformar. Nunca que os pais conseguirão saber tudo o que se a na vida de seus adolescentes, mas a presença e o cuidado podem evitar danos irreparáveis. A permissividade não reconhecida dos e pelos pais pode ser fatal para a vida dos filhos.
“13 Reasons Why” e “Adolescência” são alertas para que os pais tomem as rédeas da educação de seus filhos, a partir de uma tomada de consciência que também trará limites a eles próprios. Afinal, educar é trabalhoso e envolve abdicações. São alertas para que os governos reforcem suas políticas restritivas de uso de redes sociais por crianças e jovens. Os governos precisam também impor limites aos poderosos ilimitados das big techs.
Essa coluna é publicada em um dia muito especial para mim: meu primogênito completa 25 anos! Hoje, um jovem adulto conquistando novos espaços, vivendo novos desafios e desbravando novos caminhos. Ele faz parte da geração exposta aos efeitos das redes sociais; à impotência dos sistemas educacional e de saúde em lidar com os desafios psíquicos e cognitivos; às diversidades e, sobretudo, à estrutura familiar imbricada em uma sociedade mergulhada no consumo.
Meu filho, assim como tantos filhos de parentes e amigos, faz parte de uma rede de pais que, mesmo atentos aos riscos da era tecnológica, enfrentaram desafios enormes para limitar – ou mesmo acreditar que restringiam – seus filhos de o a conteúdos indesejados. Nada disso impediu nossos filhos de vivenciarem situações trágicas: amigos ou colegas que cometeram suicídio, morreram por overdose, foram vítimas de homicídios, ou sofreram bullying e outras formas de assédio.
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Somos pais da geração mais vulnerável à violência e à perversidade humana. Somos pais de um momento político conturbado e de políticas públicas vulneráveis às ideologias de seus dirigentes. Somos filhos de um sutil sistema que nos abduz e nos torna cegos e manipulados, que nos faz sentir culpados mesmo quando acreditamos que estamos dando o nosso melhor. O final da primeira temporada de Adolescência deixa qualquer pai e mãe dolorosamente paralisados.
É a dor que nos paralisa, que nos deixa em estado de choque diante da monstruosidade que, indiretamente, somos capazes de construir ou de sermos coniventes.