Na minha já longínqua juventude, o chute para fora tinha apenas um culpado: o pé torto. As pernas tortas tinham sido absolvidas fazia tempo por Garrincha. Mas ao pé torto não havia perdão. Tanto que veio a causar espécie uma foto famosa do pé de Pelé, repleto das mais grotescas calosidades, dedos atrapalhados, unhas assimétricas. Se aquilo não resultava num pé torto, o que mais o faria?
O pé torto, pois, é um estado de alma. O pé torto (des)caminha entre a obrigação de acertar e o medo do fracasso. É nessa hora crucial da existência que ele, pé, se faz rijo, vigoroso, robusto. Ou, pelo contrário, sucumbe como a boca torta diante do inesperado pé-de-vento. Assusta, amolece, fraqueja. E, quando bate na bola, já está ali, no bojo que vai muito além do capotão, toda a covardia do mundo.
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A bailarina, assim como Pelé, traz consigo, expostos em variadas deformidades, os ossos do ofício. Mas, tal qual acontece com a chuteira, o vestir da sapatilha parece aparar qualquer aresta, mesmo o proeminente joanete. E na hora mesmo do vamo-vê, pela magia do bailado, somos convencidos de que metido naquela ferradura está um pezinho do Instagram, um dedinho do Only Fans. Tudo coisa da nossa cabeça – a minha, a sua, mas sobretudo a da própria bailarina, responsável pela retidão daquele pé apenas torto na forma mas jamais em seu conteúdo.
Faz alguns jogos, assistimos incrédulos ao desfilar de pés cada vez mais tortos. É algo realmente impressionante, da seara das coisas transcendentais. Vovó Anésia e vovó Natália aram subitamente a surgir em convocações desesperadas, janelas de transferências abertas para o além: “Esse até minha avó fazia!”. E outros parentes, gordos ou enfermos.
O pé torto, como já mencionado, pressupõe a cabeça torta. Eu faria o seguinte: no turno da manhã, Paulistinha. Aquele jogo de antigamente em que três atacantes tinham de adentrar a área em toques rápidos e fazer o gol. No turno da tarde, psicólogo, psicanalista, psiquiatra, coach, legendários a subir a Serra do Curral. Ficaria proibido o Desafio do Travessão, visto que a excelência na sua execução já configura um sério problema a desviar o foco do principal, que vem a ser o interior da grande caçapa e não as suas hastes de sustentação.
Alinhadas as cabeças, desentortados os pés, partiria com tudo pra cima do Cruzeiro, sabidamente acometido pela tremedeira sempre que o Galo vai jogar. Mais ainda no Mineirão, o salão de festas, e diante de suas testemunhas oculares da mesma história, aquela com final feliz. O fracasso subirá à cabeça. Da cabeça descerá aos pés. Se necessário for afastar algum perigo, Éverson o fará de esguelha. A Força estará com ele.
Desde a virada sobre o Fluminense, o atleticano começou a operar a mente causadora da patologia dos pés tortos. A intervenção, cirúrgica, se deu com o bisturi a atingir os brios: “Vergonha, vergonha, time sem vergonha”. Ali, cabeça inchada, inflamada pelo tratamento de choque, o primeiro a pé a desentortar-se foi o de Rubens. “O Galo é o time da virada, o Galo é o time do amor.” A imprensa achou de apontar nossa contradição. Mas o que há de errado num amor sem vergonha?
Contra o Caracas, na quinta, o desentortar geral e ir só não se deu porque a torcida estava impedida de entrar no Terreirão, o que evitou um 10 a 1. E o DJ não teve a presença de espírito de botar pra tocar o Time Sem Vergonha. Ficou naquela do amor pudico, cheio de dedos, o que acabou por favorecer, como se viu, a recaída dos pés tortos. Tão somente 3 a 1. Ah, se tivéssemos a vovó Anésia...
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Agora é aguardar a Paulistinha e os legendários da Serra do Curral. Mens sana in pé sano. Vamo, Galo, pelamor de Deus. Time sem vergonha! Time do amor!