
O Brasil da estética: agora é a vez dos biólogos
Se ninguém segurar o Brasil da estética, em breve teremos digital influencers receitando antibióticos — com aval do Conselho Federal dos Coachings
Mais lidas
compartilhe
SIGA NO

No país onde qualquer um pode parecer médico — e onde muitos fingem ser —, agora é a vez dos biólogos entrarem em cena. Não bastassem os cursos de Instagram que transformam influencers em “especialistas” da noite para o dia, agora temos uma resolução oficial que pretende transformar laboratórios de análises biológicas em clínicas de harmonização facial.
No último dia 8 de maio, o Conselho Federal de Biologia (CFBio) publicou a Resolução nº 704/2025, que autoriza biólogos a realizarem procedimentos estéticos não invasivos e minimamente invasivos, como microagulhamento, intradermoterapia e preenchimento com ácido hialurônico. Isso mesmo: procedimentos com risco real de necrose, cegueira e infecções — liberados para quem nunca lidou com uma complicação médica na vida.
Segundo o CFBio, os biólogos que desejarem atuar na área deverão apenas comprovar a realização de um “curso de formação específica em saúde estética”, autorizado pelo Ministério da Educação. E a formação em medicina, cirurgia, farmacologia, anatomia clínica? Basta um curso. E a segurança do paciente? Ora, isso a a ser problema dos médicos.
Leia Mais
A decisão, como era de se esperar, causou indignação em boa parte da comunidade médica. Não apenas pela evidente invasão da medicina — que, no Brasil, já virou tradição — mas pelo risco crescente ao qual a população está sendo exposta por conta do populismo regulatório promovido por muitos conselhos profissionais. Isso mesmo: populismo. Porque, sob o discurso de “ampliar o mercado de trabalho” e “democratizar a estética”, escondem-se interesses corporativos, vaidades institucionais e uma perigosa banalização da saúde humana.
Curiosamente, essa não foi a primeira investida do Conselho Federal de Biologia. Em 2024, uma tentativa anterior de liberar procedimentos estéticos para biólogos foi barrada pela Justiça Federal do Distrito Federal, em ação movida pelo Conselho Federal de Medicina. Na ocasião, a decisão liminar suspendeu os efeitos da norma por entender que ela invadia competências privativas da medicina e colocava em risco a saúde da população.
Mesmo diante dessa advertência judicial, o CFBio insistiu na investida em maio de 2025, publicando a Resolução nº 704/2025 — praticamente com o mesmo conteúdo da anterior. Dessa vez, a norma segue válida até o momento, permitindo que biólogos, mediante um simples curso, realizem procedimentos com real risco de necrose, cegueira e infecções graves. E se houver uma complicação, para quem os biólogos encaminharão os pacientes? Para os médicos, é claro!
Mas a pergunta que não quer calar é: até quando precisaremos da intervenção do Judiciário para conter o avanço de resoluções abusivas? E até quando a estética será tratada como terreno livre para a atuação de qualquer um que deseje faturar alto com toxina botulínica, agulhas e seringas?
A medicina estética virou, há tempos, um dos negócios mais lucrativos do país. E onde há lucro fácil, sempre haverá disputa de mercado. O problema é que, nessa disputa, quem está sendo esquecido é o paciente. Aquela pessoa que, encantada pelas promessas de “procedimentos rápidos, baratos e indolores”, acaba com a face necrosada, com sequelas permanentes ou até mesmo morta, em clínicas improvisadas, comandadas por profissionais que jamais deveriam estar ali.
Não se trata aqui de desmerecer a biologia — ciência essencial para a saúde pública, a pesquisa e o meio ambiente. Trata-se de colocar cada profissão no seu devido lugar. Porque não é razoável, em um país minimamente sério, que um profissional sem qualquer formação clínica ou cirúrgica seja autorizado a aplicar substâncias no rosto de alguém, manipulando vasos e tecidos profundos. O resultado está aí: um festival de complicações, sofrimento, impunidade e processos judiciais que entram para a estatística do “erro médico”.
O que o Brasil precisa não é de mais resoluções como essa, mas de uma legislação que imponha limites claros e objetivos à atuação dos conselhos profissionais. Cada profissão deve atuar dentro dos seus domínios de competência técnica e científica. Expandir artificialmente essas fronteiras por resolução, sem base legal, é transformar o interesse corporativo em tragédia anunciada.
O que o Conselho Federal de Biologia fez não foi regulamentar uma nova atribuição. Foi autorizar o exercício ilegal da medicina, por meio de um documento com timbre oficial. E, se nada for feito de forma estruturada, esse ciclo vai se repetir com outros conselhos — como já ocorreu antes com dentistas, fisioterapeutas, biomédicos, farmacêuticos e esteticistas.
Siga nosso canal no WhatsApp e receba notícias relevantes para o seu dia
Se ninguém segurar o Brasil da estética, em breve teremos digital influencers receitando antibióticos — com aval do Conselho Federal dos Coachings.
OBS: Recentemente, o Conselho Federal de Odontologia (CFO) anunciou uma Resolução autorizando cirurgias plásticas por parte de dentistas. Na semana que vem, falaremos sobre este assunto!
Renato Assis é advogado há 18 anos, especialista em Direito Médico e Empresarial, professor e empresário. É conselheiro jurídico e científico da ANADEM. Seu escritório de advocacia atua em defesa de médicos em todo o país.
Instagram: renatoassis.advogado
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.