Tiago Baumfeld
Tiago Baumfeld
Ortopedista Especialista em Pé e Tornozelo. Doutor em Ortopedia pela UFMG.
PÉ & TORNOZELO

"Ciência Fast-Food": perversão da produção científica na era dos concursos

É um retrato lamentável da desvalorização da ciência e uma distorção profunda dos critérios de avaliação médica no Brasil

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Em tempos em que a medicina enfrenta desafios éticos, científicos e sociais sem precedentes, uma nova aberração ganha espaço entre os futuros residentes: a terceirização da autoria científica. Uma empresa que atua no setor oferece algo que parece inofensivo à primeira vista — artigos científicos prontos em até 40 minutos.

A promessa, direcionada a estudantes e médicos recém-formados que buscam pontuação extra nos processos seletivos de residência médica, é clara: terceirize sua produção científica e ganhe pontos no currículo. Mas por trás dessa promessa se esconde um retrato lamentável da desvalorização da ciência e uma distorção profunda dos critérios de avaliação médica no Brasil.

A indústria da autoria fantasma

Não é difícil entender por que um serviço como esse encontra demanda. O sistema de seleção para Residência Médica no Brasil ou a atribuir pontuações significativas à produção científica dos candidatos. Artigos publicados, ainda que em periódicos sem rigor ou impacto, somam pontos que podem ser decisivos em uma classificação. A intenção original desta regra, ao menos em teoria, seria nobre: incentivar o pensamento crítico, a familiaridade com o método científico e o hábito de consumir e produzir conhecimento baseado em evidências.

Contudo, na prática, esse sistema abriu caminho para uma indústria de produção acadêmica terceirizada. Empresas semelhantes à citada acima, que provavelmente surgirão, representam o ápice dessa distorção. Ao oferecer artigos prontos mediante pagamento — com “entrega rápida” e “orientação personalizada” — ela transforma a ciência em mercadoria, e a autoria, em produto digital de prateleira.

O desvirtuamento da formação médica

A formação médica pressupõe mais do que decorar guidelines e prescrever medicações. Pressupõe a capacidade de raciocinar, questionar, entender a lógica por trás das condutas clínicas e, sobretudo, manter-se em constante atualização frente às evidências científicas. Incentivar o contato com a pesquisa não é um capricho acadêmico, mas uma estratégia essencial para formar médicos capazes de entender as limitações dos estudos, identificar vieses e interpretar resultados de maneira crítica.

Quando um estudante paga por um artigo pronto e ainda tem seu nome estampado como autor principal, perde-se completamente o sentido pedagógico da produção científica. Ele não aprende a elaborar uma pergunta clínica, não sabe como revisar literatura, desconhece o funcionamento de um comitê de ética e, muitas vezes, sequer leu o artigo que assina. Trata-se de uma farsa — e das mais perigosas, pois chancela um atalho com aparência de mérito.

A normalização da fraude acadêmica

O problema se agrava quando essa prática deixa de ser exceção e a a ser aceita — ou ao menos tolerada — como parte da estratégia de aprovação nos concursos. Essa empresa se apresenta abertamente nas redes sociais, com uma linguagem leve e sedutora, oferecendo “soluções” para estudantes sem tempo ou com dificuldades de produzir ciência.

Em vez de alertar sobre os riscos éticos e legais desse modelo, muitos professores, coordenadores e cursinhos fazem vista grossa — alguns chegam a recomendar o serviço indiretamente, como se fosse uma alternativa legítima.

A fraude acadêmica, nesse contexto, é sutil. Não se trata de plágio clássico ou falsificação de dados — embora esses problemas também ocorram —, mas sim de uma burla ética à noção de autoria. Colocar o nome em um artigo que você não escreveu, não pesquisou, nem revisou, é fraude. Ponto. E é uma fraude que corrompe o sistema de mérito, desvaloriza os candidatos que se dedicam genuinamente à pesquisa e mina a credibilidade da produção científica brasileira.

A cultura do imediatismo e do currículo de fachada

Vivemos uma era em que tudo precisa ser rápido, simples, empacotado e escalável. Esse modelo de produtividade se infiltrou na medicina por meio da cultura dos cursinhos, das apostilas mastigadas e agora, da produção científica fast-food. Esse tipo de empresa é a consequência lógica de um sistema que valoriza o currículo quantitativo e negligencia o conteúdo real.

Artigos em 40 minutos, com prazos de entrega cronometrados e promessa de publicação em revistas “aceitas pelos editais” transformam a ciência em um jogo de aparência. O estudante não aprende nada sobre o processo científico, mas sai com um título pomposo no Lattes. E quando esse mesmo estudante entra em um programa de residência médica, com uma “produção científica” que jamais produziu, como esperar que compreenda a base teórica dos protocolos que deve aplicar?

Quer mais dicas sobre esse assunto? e: www.tiagobaumfeld.com.br ou siga @tiagobaumfeld

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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