x
LITERATURA RECICLADA

Lixo extraordinário: livros descartados viram papel reciclado em BH

Livros do poeta Jorge de Lima que quase viraram papel reciclado em BH chamaram a atenção para o negócio do descarte de obras literárias

Publicidade
Carregando...

Leda Moreira Silva trabalha de pé, metodicamente. Em frente a uma pilha de livros, ela rasga rapidamente o material, fazendo a separação de capa (que será descartada) e miolo (o que interessa). Diante da montanha de títulos à vista, não há como o trabalho ter fim.

“O crime do Padre Amaro”, de Eça de Queiroz, “O gaúcho”, de José de Alencar, “Lira dos vinte anos”, de Álvares de Azevedo, “Reflexos do baile”, de Antonio Callado, e até mesmo o “Manifesto do Partido Comunista”, de Marx e Engels, eram algumas obras à vista quando a reportagem do Estado de Minas visitou o Novo Mundo, galpão de comércio de papel no Barro Preto, em BH.

Pilha processada de livros para reciclagem pela empresa Novo Mundo, em BH
Pilha processada de livros para reciclagem pela empresa Novo Mundo, em BH Túlio Santos/EM/D.A Press

Muito provavelmente elas não mais existam. Caso tenham sido processadas, seus miolos foram acondicionados em grandes blocos de “papel branco”, como é chamado o conteúdo de livros que será comercializado para reciclagem de papel. As capas, que têm cor e cola, são descartadas. Os livros são a parte menor do negócio – o grande volume é de papelão.

À frente do Novo Mundo, empresa familiar há 35 anos em atividade na Avenida do Contorno, Cristiano Afonso entende de papel, não de literatura. Quando recebe, via doação ou compra (de R$ 0,40 a R$ 0,50 o quilo), volume representativo de livros, eventualmente chama quem entende do riscado.

Valdeir do Rosário Oliveira é uma dessas pessoas. Diariamente sai pela manhã, a pé, por Belo Horizonte. Garimpa na cidade inteira. Em janeiro, no périplo diário por bazares e ferros-velhos, chegou a esses galpões. Carga grande de livros havia acabado de chegar. Como não tinha condições de separar o material sozinho, chamou alguns livreiros.

Indignação on-line

Um deles era Fernando Fonseca, da Livraria Rosaes, no Edifício Maletta, tradicional reduto de sebos de BH. No meio de dezenas de livros que iriam para a reciclagem, havia exemplares que pertenceram ao poeta modernista Jorge de Lima (1893-1953). Os volumes foram adquiridos por livreiros, um deles fotografou, mandou para um amigo e a história chegou à internet.

Houve indignação imediata, típica das redes sociais, de que a biblioteca do poeta alagoano tinha parado num lixão em BH. Não foi bem assim, eram apenas alguns exemplares.

Livro da coleção de Jorge de Lima, autografado pelo escritor português Joaquim Paço d'Arcos
Livro da coleção de Jorge de Lima, autografado pelo escritor português Joaquim Paço d'Arcos, escapou por pouco de virar papel reciclado Túlio Santos/EM/D.A Press

Fernando, por exemplo, adquiriu “Desaparecido”, antologia do poeta português Carlos Queiroz (1907-1949). Em sua dedicatória ao colega brasileiro, de 3 de dezembro de 1935, ele escreveu: “Para o grande poeta Jorge de Lima, que eu gostaria de conhecer melhor, lembrança da simpatia e iração”.

“Como Jorge de Lima era muito religioso, algumas coisas dele foram doadas para instituições (ligadas à Igreja Católica). Antes dessa leva houve outra”, avalia Mário Andrade, livreiro especializado em obras raras. “Nem são livros tão importantes, pois não estão autografados pelo Jorge de Lima, mas para ele”, acrescenta Fernando Fonseca. Do pequeno lote, o volume mais relevante trazia dedicatória de Murilo Mendes, de 23 de abril de 1947, “ao querido irmão Jorge”, que foi parar com outro livreiro.

O imbróglio chamou a atenção para o descarte, por vezes sem critério, feito por pessoas, escolas e instituições de diferentes naturezas. Somente uma pequena fração desse material será recuperada. A maior parte pode virar folha A4, guardanapo ou papel higiênico.

Bibliotecas, por incrível que pareça, não são os lugares ideais para a doação. “Elas descartam livros como todo mundo”, afirma Oséias Ferraz, da Crisálida, sebo mais tradicional do Maletta.

“Nos anos 1990, muita gente procurava Paulo Coelho. Biblioteca segue os modismos, e o acervo envelhece. Saramago continua lido, mas menos do que na época do Nobel (1998). Então, se uma biblioteca tinha 10 exemplares do ‘O evangelho segundo Jesus Cristo’, vai manter dois, dando espaço para aqueles mais procurados agora”, explica.

Livros descartados em BH, que serão transformados em papel higiênico, guardanapo ou folha A4
Livros descartados em BH, que serão transformados em papel higiênico, guardanapo ou folha A4 Tulio Santos/EM/D.A Press

Livro de biblioteca não costuma ser bem-vindo em sebo. “Evito comprar livro com carimbo de biblioteca, porque é um problema explicar ao cliente que ele não foi roubado, que ela se desfez do livro”, acrescenta Ferraz.

Além do Novo Mundo, a reportagem foi à Associação dos Catadores de Papelão e Material Reaproveitável. No dia da visita, não havia livros. Os tempos já foram melhores para os catadores, afirma Getúlio Andrade, da Asmare. “O papel está sumindo por causa disto, né?”, comenta ele, apontando para o celular.

Livros que chegam à associação só seguem para a reciclagem “quando não dá mais para reusar”, garante Andrade. “A gente conhece muita ONG. O pessoal liga, pergunta se tem livro e vem olhar. Se interessar, leva. Às vezes, a gente nem cobra.”

Trituração automática

Na Grande BH, quem faz a ponte com a indústria é a distribuidora Santa Maria. A matriz, no Carlos Prates, recebe todo tipo de material em papel. Ao contrário dos outros galpões visitados, ali é tudo automatizado. “Todo livro que chega no Santa Maria não tem separação, porque vai direto para a máquina trituradora (inclusive com capa, espiral, cola). Não se mistura essa carga com nenhum outro tipo de material”, explica o gerente Anderson da Conceição.

Como ninguém mexe no material, ninguém fica sabendo o que havia nele. “Aqui é direto para a indústria. Se alguém achar uns livros bacanas, não pode (mexer), porque é tudo processado”, acrescenta.

Siga nosso canal no WhatsApp e receba notícias relevantes para o seu dia

No começo de cada ano, escolas públicas e particulares vendem aos montes livros didáticos para a Santa Maria, comenta Anderson. A distribuidora não aceita doações. Caso alguém queira ceder, em vez de vender, o valor do material (em média, R$ 0,45 o quilo) será doado pela Santa Maria para instituições beneficentes.

Tópicos relacionados:

bh cultura literatura livro lixo reciclagem

e sua conta

Se você já possui cadastro no Estado de Minas, informe e-mail/matrícula e senha. Se ainda não tem,

Informe seus dados para criar uma conta:

Digite seu e-mail da conta para enviarmos os os para a recuperação de senha:

Faça a sua

Estado de Minas

Estado de Minas

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Aproveite o melhor do Estado de Minas: conteúdos exclusivos, colunistas renomados e muitos benefícios para você

Assine agora
overflay