Marlon de Paula e Maria Vaz unem artes visuais e literatura em ‘Tramontana’
Artistas investigam a presença da imaginação literária nas vidas que habitam as muitas faces de BH, na exposição em cartaz na Fazendinha Dona Izabel
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Siga noEspecial para o EM - Nossos imaginários, as histórias contadas pela voz do povo – conhecidas como lendas urbanas ou, antigamente, chamadas de histórias de trancoso – continuam vivas em nossas memórias. De que maneira elas nos orientam a imaginar as histórias não oficiais da cidade?
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Como as artes visuais, a fotografia e o audiovisual podem operar no agenciamento das fabulações imaginárias que circulam de boca em boca em Belo Horizonte? E quando os artistas escutam e abordam as literaturas presentes na oralidade popular?
A exposição “Tramontana” está em cartaz na Fazendinha Dona Izabel, localizada na Barragem Santa Lúcia – um bem cultural reconhecido e tombado como patrimônio histórico em 1992, conquista importante dos moradores desse território.
Lugar de memórias profundas, a Fazendinha estabelece um diálogo potente com a proposta dos artistas Marlon de Paula e Maria Vaz. A exposição e o espaço cultural se encontram pela via da memória das lutas comunitárias, da aproximação com os mestres da cultura e da ação coletiva que emerge quando o povo encontra modos de contar e recontar suas próprias histórias.
São histórias movidas pelo desejo de manifestação pública: protestos lembrados, lenços brancos balançando em caminhada contra a desconfiguração permanente de um bairro. A presença marcante de um dançarino – entidade encantada – que narra a história pública da importância de uma festa onde a juventude fez da quadra o seu lugar de memória.
Das Rosas de São Bernardo – grupo de mulheres com mais de 60 anos – às infâncias, às lembranças das lavadeiras e das benzedeiras. As vivências noturnas de uma cidade no tempo presente – suas luzes e seus mistérios. Uma cidade iluminada à noite ainda guarda suas visagens?
Pesquisa
A pesquisa dos artistas para a exposição “Tramontana” trata dessas histórias fantásticas que sobrevivem, se reinventam, se reelaboram, se inscrevem e se atualizam na Grande Belo Horizonte. O resultado é fruto de um trabalho longo, de mais de dois anos de escuta – um exercício poético de inventário das vozes da cidade, onde se identificam indícios de vivências de luta e resistência.
Artistas e escritores sempre mantiveram um diálogo muito especial nos mundos das artes. A partir do interesse comum pela literatura fantástica, nasceu este projeto de pesquisa em artes: uma investigação sobre a presença da imaginação literária nas vidas que habitam as muitas Belo Horizontes, onde tudo é mistério.
Onde o dançarino Ricardo Malta venceu o Capeta do Vilarinho; onde as raizeiras e lavadeiras seguem ligadas à preservação da Serra do Rola-Moça. A exposição ainda faz referência à memória de uma mulher que transformou mentalidades ao romper com os modelos sociais de meados do século 20: Dona Vivacqua, a célebre Luz del Fuego – atriz, dançarina, naturista e escritora que recompôs nosso imaginário feminino.
Há, também, uma videoarte que monta imagens raríssimas da implosão de um conjunto de edifícios que abrigava a Galeria do Comércio, o Mercado Mauá e o Hotel Panorama – na região da Lagoinha, porta de entrada de mercadorias e de imigrantes que vieram trabalhar na construção da capital. Um documento importante para contar as transformações socioespaciais desse bairro, que foi – e continua sendo – fundamental na história da cidade.
Na exposição, podemos visualizar o trabalho de investigação dos artistas em arquivos documentais, jornais impressos e televisivos, além de entrevistas, coletando aquilo que nós, historiadores, nomeamos como história oral.
Há um gesto de montagem e desmontagem que interroga o presente a partir das histórias do ado. Interessados nas sobrevivências das narrativas e das imagens, os artistas da exposição “Tramontana” movimentam os fantasmas da nossa cidade.
Poesias urbanas
Apesar do progresso tecno-ilógico – e me refiro aqui ao termo de Adélia Prado – Maria Vaz e Marlon de Paula demonstram, com imagens criadas a partir de ferramentas analógicas, digitais e artificiais, que, apesar de tudo, as pessoas continuam insistindo em inventar jeitos criativos de viver na cidade. Continuam narrando seus medos, seus assombros, suas conquistas, derrotas, sonhos, fantasias, imaginações — em forma de fantásticas poesias urbanas.
E, mais importante ainda: as artes, enquanto mediadoras da cultura, desempenham um papel essencial na transmissão das experiências, na construção de diálogos e na performance das transformações. As imagens recriam no tempo presente – no aqui e agora – um meio que ajuda a repetir, uma vez e outra vez, tantas quantas forem necessárias e possíveis, a vivência transformada em narrativa. A experiência comum que o povo oferece à cidade.
“TRAMONTANA”
Exposição de Maria Vaz e Marlon de Paula. Na Fazendinha Dona Izabel (Avenida Arthur Bernardes, 3.120 - Barragem Santa Lúcia). Visitação: quartas e quintas, das 10h às 16h; sextas e sábados, das 13h às 18h. Até 31/5. Entrada franca.
*Doutora em História da Arte pela Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne e professora de Teoria, Crítica e História da Arte na Escola de Belas Artes da UFMG.