
Gastronomia abre portas para pessoas em vulnerabilidade social
Cursos de gastronomia abrem portas no mercado de trabalho para quem mais precisa resgatar a autoestima, ter qualificação profissional e renda
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Siga noA gastronomia como meio para transformar vidas. Em Belo Horizonte, projetos e iniciativas de chefs e do poder público surfam nessa onda com o propósito de dar oportunidade para quem precisa, pessoas que buscam qualificação para alcançar conhecimento, capacitação, autoestima e fonte de renda, mirando uma existência digna. E a ideia não é só ensinar a pessoa a descascar batata com agilidade e cortar a cebola com perfeição, mas ensinar toda a arte que existe dentro de uma cozinha como veículo para mudar destinos. Muitos sonham com uma chance.
Essa é a visão do chef Ivo Faria, que fez de seu sonho uma realidade, com a criação, no ano ado, do Instituto Ivo Faria, com o objetivo de formar, qualificar e abrir as portas para pessoas em situação de vulnerabilidade social no mercado da gastronomia. O próprio Ivo é um caso de jovem de periferia que “venceu na vida” pela gastronomia.
“Vim de periferia, do Primeiro de Maio, que me ensinou muito, me deu força para fazer um trabalho digno e dar para minha família o que almejava. E o que conta muito é o exemplo familiar, que tive dentro da minha casa, o que tornou mais fácil meu crescimento. Fui criado por uma mãe desde os sete anos, não foi fácil. Com 17 anos dava aula no Senac e com 19 já era chef, muito precoce. Sempre almejando crescimento com respeito ao próximo.”
Exemplo de jovem de periferia que "venceu na vida" através da gastronomia, o chef Ivo Faria quer retribuir a ajuda que teve ao longo da carreira
O Instituto Ivo Faria nasceu diante de um desafio imposto pela vida pós-pandemia do coronavírus. Imagina fechar o Vecchio Sogno, casa de 25 anos, com cardápio inovador, um chef premiadíssimo, um ambiente sofisticado, com trabalho de ponta: “O projeto é de 2023, mas começou em 2022 e foi como um novo sonho, o ressurgir das cinzas. As coisas estavam nebulosas, complicadas e hoje estou leve, tranquilo, feliz pelo que faço, graças a Deus. A cabeça foi feita para pensar, ter a visão de futuro, o ado como base e o presente nos mostra o que fazer, tomar um novo rumo”.
Assim, a missão de Ivo Faria, num futuro próximo, é expandir o lado social: “O Instituto é a forma que encontrei de estar no mercado, de forma light, sem 60 funcionários nas costas, fazendo o que gosto, que é cozinhar e ensinar. Ele é importante e vai ter ainda mais significado”, conta. O objetivo é desenvolver projetos sociais de formação de mão de obra qualificada para o mercado de gastronomia e trabalhar pela valorização dos ingredientes regionais.
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O chef busca por parcerias, patrocínios e professores para alavancar ajuda a quem precisa: “Estou focado, buscando ajuda para o que será um braço do atual Instituto.”
Segundo ele, é uma forma de retribuir a ajuda que teve ao longo da carreira: “O olhar social deveria fazer parte das entidades. Muitas têm, mas ainda é pouco. Quando entrei no Senac, ele tinha essa proposta, que é incrível. Além de fazer o curso de cozinheiro, tinha ajuda de custo para pagar a agem mensal, que era de grande valia, porque a maioria não tinha condições financeiras para se deslocar e isso me ajudou muito em todos os pontos.”
Futuro promissor
Para Ivo Faria, ser cozinheiro é uma profissão incrível porque dá dignidade e os profissionais, muitos de origem simples, am a conviver com um mundo diferenciado. E, se procurarem se desenvolver na área, com um olhar diferente para buscar coisas novas, fazer bem-feito, valorizar o trabalho, vão encontrar seu espaço pela falta de mão de obra. “Então, se a pessoa se dedicar, terá um futuro promissor pela falta de líderes e bons cozinheiros no mercado”.
Ivo conta que teve ajuda pelo caminho: “Várias pessoas me deram apoio, principalmente o professor francês Lucien Iltis. Não só ele, mas outros cozinheiros me ajudaram, estavam do meu lado. Tenho um ditado: ‘trabalhe com os bons e com aqueles que querem lhe ajudar, porque quem está em cima te puxa, quem está embaixo te empurra’. Estar junto e ao lado de quem busca conhecimento.”
No fim, o que vale é colher emoções. O chef revela que está sempre se emocionando com o trabalho, com o que prepara no dia a dia, com o resultado, mas, principalmente, “por ver e sentir de onde eu vim e ter participado de momentos homéricos que nunca pensei viver. Seja dar uma aula para Alain Ducasse, o mestre dos mestres no mundo, e ser respeitado, na França, por um grupo de chefs locais. Assim como me emociona ver as pessoas que trabalharam comigo levaram conhecimento e sabedoria para que pudessem transformar suas vidas, seja no Vecchio Sogno ou no Instituto. É assim, dá a mão, a fórmula e deixa a pessoa seguir o caminho.”
Cursos técnicos
O chef Leo Paixão é outra estrela da gastronomia que se propôs a dividir sua expertise compartilhando conhecimento para formar uma brigada do mais alto nível que a cozinha exige. Ele assina a diretoria acadêmica e acompanha de perto toda a metodologia e o programa de ensino do Instituto de Hospitalidade e Artes Culinárias – INHAC, escola social que atua na inserção produtiva de jovens em situação de vulnerabilidade social por meio da formação de excelência em cursos técnicos de gastronomia.
Neste ano, o INHAC já trabalha com a primeira turma do curso técnico em gastronomia, com 80 vagas para novos cozinheiros. Reconhecido pelo Conselho Estadual de Educação, o curso é gratuito e tem carga horária de 960 horas.
Karen Lima, Álvaro Silva, Gustavo Arcanjo e Beatriz Nazário: alunos do curso técnico de gastronomia do INHAC fazem estágio no novo restaurante de Leo Paixão
Entre os alunos, quatro iniciantes foram selecionados para trabalhar como estagiários do novo restaurante do chef Leo Paixão, o Macaréu, em Nova Lima, na Grande BH. Chance de aplicar o que aprenderam em sala de aula e nas cozinhas didáticas para a pressão do dia a dia de uma cozinha profissional. São eles Karen Lima, Álvaro Silva, Gustavo Arcanjo e Beatriz Gabrielle Nazário.
Karen Lima, de 35 anos, formou-se em designer gráfico, mas nunca exerceu a profissão. Desde criança, era encantada pela cozinha, observando a mãe e tia preparando a comida, e agora tem a oportunidade de seguir o caminho que a move e para o qual tem talento.
“Fiz meu primeiro caderno de receitas aos 11 anos e demorei até chegar aqui. Percorri outras estradas. Fui atuar em call center e fazia bolo de pote e pão de mel para vender. Fazia sucesso. Então, partir para um curso de bolo, ei a aceitar encomendas e há um ano decidi viver só da confeitaria. Tudo bem no início, no boca a boca, um o de cada vez”, relembra.
Depois de saber do INHAC por uma amiga, Karen fez a inscrição e quer aprender tudo de confeitaria e gastronomia: “Antes, não tinha condições. Agora, tenho 12 meses de aprendizado pela frente. No primeiro módulo, aprendemos sobre sopas e caldos. E, no segundo, saladas e entradas frias.”
Para Karen, ter a chance do estágio tendo Leo Paixão como mentor é incrível. Enfatiza que se sente lisonjeada e feliz em ter tido a oportunidade de começar a nova etapa da sua vida em um grande restaurante, e com um dos chefs mais conceituados do Brasil: “Estou há pouco tempo e já aprendi muita coisa. Tenho certeza de que vou aprender ainda mais ao longo do estágio. Essa experiência terá grande peso e agregará muito na minha formação profissional.”
“Um sonho”
Gustavo Arcanjo, de 21 anos, está animado com a nova porta que se abriu. Depois de ser abandonado pela mãe, sofrer maus-tratos, viver em um abrigo e orfanato, trabalhar como barman, porteiro e auxiliar istrativo, sair de Pernambuco, ir para São Paulo e chegar a BH e viver por três anos em uma república social, ele se prepara para morar sozinho e seguir a vida.
Karen Lima, aluna do INHAC, quer aprender tudo sobre confeitaria
“Sempre gostei de comer. Acho lindo quem produz a comida, mas não era de ir para o fogão. A diretora do INHAC me falou do curso, foi até a república, não sabia. Agarrei a chance e hoje já sou veterano, sou da segunda turma, mais avançada. E, quando soube do estágio, só chorei. Pensei em tantas coisas, como o mundo pode se abrir, não esperava. Um milagre.”
Gustavo entrou em um novo mundo: “É tudo lindo, glamouroso, os funcionários são pacientes, eles e os clientes foram receptivos, parece um mundo perfeito. Um sonho”, destaca o estagiário de Leo Paixão. Com tantos caminhos se apresentando, sabe que a gastronomia é o que vai trilhar. E, até agora, chamou a atenção a montagem de pratos de sobremesa: “No futuro, quem sabe, ser um chef?”
Nos primeiros dias de trabalho, ele já ou pela produção, montagem de pratos e na finalização. E revela que se encantou com os frutos do mar, principalmente polvo e lula.
Já Beatriz Gabrielle Nazário, de 19 anos, está impressionada com a dinâmica da cozinha: “Mesmo com toda a correria, a equipe tem paciência de explicar todos os processos e temos aprendido muito.”
Para a fundadora e diretora-executiva do INHAC, Sarah Rocha, “a formação de excelência que queremos para nossos alunos a pela prática do dia a dia, com a pressão pelo tempo e pela qualidade dentro da cozinha. Preparamos os alunos para atender a uma grande demanda do mercado por cozinheiros. O objetivo é que tenham contato diário com profissionais de alto nível e aprendam fazendo.”
Trilhas para a mudança
Vontade de aprender, empenho, determinação para mudar de vida com geração de renda e propósito. Requisitos essenciais para quem busca formação e qualificação no projeto “Trilhas da Gastronomia”, do Programa Valorização da Gastronomia articulada à Agroecologia da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH).
“O programa é um conjunto de cursos organizados em trilhas para qualificar e proporcionar a inserção no mercado de trabalho formal, assim como fomentar o empreendedorismo. Ele compõe uma das ações que fez BH receber o título de Cidade Criativa da Gastronomia pela Unesco”, destaca Leonardo Tolentino, coordenador de Qualificação Profissional do Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional Mercado da Lagoinha (CRESAN).
"Todo curso gratuito lida com evasão e desistência consideráveis, mas, em média, formamos 25 pessoas por edição. E 50% continuam seguindo as trilhas." Leonardo Tolentino - coordenador de qualificação profissional do Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional Mercado da Lagoinha
As trilhas são organizadas em três núcleos: panificação, comidas mineira e belo-horizontina e confeitaria. Além da gastronomia, os alunos têm a opção de trilhar o caminho da agroecologia. Espaço para pensar a gastronomia como um movimento de ciência e prática, desde o aproveitamento dos alimentos até destino dos resíduos orgânicos, compostagem e lixo zero sem o uso do plástico descartável.
“Gastronomia não é só comer e cozinhar, é lógica de viver. É interligado, se estabelece em cadeia. Assim como um ato político, de autonomia do sujeito”, destaca Leonardo.
De acordo com Tolentino, o objetivo do “Trilhas Gastronomia” é gerar renda para fazer com que as pessoas saiam da situação de vulnerabilidade, “que possam andar por conta própria”. Como o coordenador observa, “elas conseguem dar esse salto, o difícil é a permanência pela alta rotatividade no setor de gastronomia e por contingências da vida”, sendo a opção de empreender o cenário mais viável em certos casos.
Ainda que não seja um curso técnico, tem potencial para ser, já que a formação é de alto nível. Quem completa recebe 300 horas de aprendizado. “Todo curso gratuito lida com evasão e desistência consideráveis, mas, em média, formamos 25 pessoas por edição. E 50% continuam seguindo as trilhas, já que temos matriz curricular e processo pedagógico que produz argumentos entre os cursos.”
O público é diverso, com alunos de 16 a mais de 80 anos. Tanto moradores da periferia quanto da ampla concorrência: “Há uma sequência de cursos, desde o auxiliar de cozinha, o carro-chefe com todas as técnicas básicas da gastronomia, até comida de boteco, massas frescas, culinária vegetariana e vegana e comida de marmitex”, enfatiza Tolentino.
Para 2025, a ideia, revela o coordenador, é ensinar, resgatar e retomar em um curso a comida da cozinha ancestral, afro-periférica, discutir o legado da cultura alimentar afrodescendente, quilombola, sua influência e importância. Cursos que abraçam aspectos antropológicos e sociológicos.
Na cozinha do INHAC, os jovens aprendem receitas de várias origens, incluindo steak tartare
“O processo de conhecimento não é unilateral. Aliamos questões tradicionais com técnicas gastronômicas atuais. Retomar a memória afetiva. Uma chef, por exemplo, aplica uma atividade, que chama de aula criativa, que é transformar um prato da infância, caseiro, usando as técnicas aprendidas no curso, apresentá-lo de outra maneira. O que instiga os alunos.”
O projeto está com inscrições abertas para os cursos gratuitos de comida de boteco, panificação caseira e bolos decorados. São 60 vagas para os públicos prioritários e 30 destinadas à ampla concorrência (veja o quadro).
Interessados podem se inscrever no portal da PBH até 2 de junho. As aulas começam em 18 de junho, no Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional Mercado da Lagoinha (CRESAN). Cada candidato pode se inscrever em apenas um curso. As listas de classificados e de espera serão divulgadas em 4 de junho.
Morro das Pedras
Vale registrar que a PBH também promove capacitação profissional para moradoras do Morro das Pedras que atuam com gastronomia. São 20 mulheres participantes. O curso teve início no último dia 29 de abril e será finalizado em 9 de junho. A qualificação é promovida em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e oferece ampla programação no Espaço Social e Cultural É Tudo Nosso. O curso é voltado para técnicas de comercialização com foco em gastronomia e faz parte da Jornada Empreendedora do programa de Inclusão Produtiva em Vilas e Favelas.
Público-alvo
Quem pode participar do Trilhas da Gastronomia
Público prioritário
- Pessoas residentes no território da Lagoinha
- Pessoas LGBT+, especialmente, pessoas travestis e transexuais
- Mulheres em situação de violência doméstica
- Pessoas inseridas no Programa de Assistência Alimentar e Nutricional Emergencial
- Pessoas em situação de rua
- Estudantes matriculados na Educação de Jovens e Adultos (EJA)
- Pessoas inseridas no Programa Territórios Sustentáveis
- Beneficiários das feiras e eventos da cidade
Ampla concorrência
- Cidadãos residentes em Belo Horizonte que não fazem parte do público prioritário
Serviço
Instituto Ivo Faria (@institutoivofaria)
Rua Modesto Carvalho de Araújo, 652, Belvedere
(31) 97158-1768
Instituto de Hospitalidade e Artes Culinárias – INHAC (@inhacbrasil)
Espaço 356 (Rua Adriano Chaves e Matos, 100, Olhos D'Água
(31) 98371-6452
Trilhas da Gastronomia
Avenida Antônio Carlos, 821, Lagoinha
(31) 3277-6085