Da França a Minas, conheça técnicas que fazem toda a diferença na cozinha
Muitos das técnicas que usamos na cozinha vêm da França, mas, mesmo que de forma não sistematizada, os saberes mineiros influenciam o nosso dia a dia
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Siga noSe você acha que mise en place é nome de sobremesa sa ou que “branqueamento” só se faz com roupa, este “glossário” é o seu novo melhor amigo na cozinha. De truques herdados das as de ferro mineiras até técnicas consagradas na França, reunimos aqui o essencial para quem está começando a se aventurar entre as e colheres de pau. Com receitas e dicas de especialistas, vamos destrinchar o o a o e revelar técnicas que fazem toda a diferença no sabor e no resultado final.
Antes de ligar o fogo, vem a primeira lição: mise en place. Esse termo, que parece coisa de chef estrelado, na verdade, refere-se à preparação dos ingredientes e quer dizer “colocar em ordem”. A professora de gastronomia Rosilene Campolina explica que esse processo veio a partir do chef e restaurateur francês Auguste Escoffier, que popularizou e renovou os métodos tradicionais da culinária no país europeu.
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“A França foi o país que sistematizou a cozinha. Auguste foi responsável por organizar as cozinhas de grande porte em praças – salada, molhos, guarnições e carnes – para evitar misturar e haver contaminação cruzada”, afirma. Na prática, isso consiste em separar os ingredientes, picar, medir, deixar tudo no jeito para que, na hora do fogo, o preparo seja organizado, sem correria ou sustos no meio da receita.
Com tudo no seu devido lugar, é hora de acender o fogão – e, para começar, a indicação de Rosilene é a prática e versátil, a omelete sa, que aparece nas mesas do café da manhã ao jantar.
'A França foi o país que sistematizou a cozinha' - Rosilene Campolina, professora de gastronomia
Pode parecer simples e óbvio, mas não se engane: sob a casquinha dourada, há técnicas que exigem sensibilidade. “Pensei na omelete porque, além de ser uma refeição quase completa, utilizam-se várias técnicas. Ela é, inclusive, instrumento de provas de gastronomia na França, como um teste”, destaca a professora.
A base da omelete são ovos batidos, no mínimo dois, conforme orienta Campolina. Depois de temperados com sal e pimenta, à gosto, é hora de aquecer uma frigideira antiaderente e adicionar a manteiga para não grudar. “Aqui a manteiga deve atingir o ponto noisette – ou seja, quando ela derrete, ganha um tom dourado e exala um cheirinho de pipoca estourando. Depois, despeje os ovos”, descreve.
Nem cru, nem seco
Depois de colocar os ovos na frigideira, é preciso mexer uniformemente, sem parar. “Muitas pessoas colocam lá e deixam, como se fosse uma panqueca. Mas o correto é mexer uniformemente para a massa ficar fofinha. E, antes que o ovo endureça, você coloca o recheio de sua preferência (queijo, cogumelos, presunto), retira a frigideira do fogo e dobra as extremidades da omelete, com auxílio de uma espátula”, acrescenta a professora.
O correto é mexer os ovos uniformemente, sem parar, para a massa ficar fofinha
O segredo da omelete perfeita está no ponto – e o nome dado a ele pelos ses é baveuse (cremosa por dentro, sem estar crua). A superfície deve estar levemente dourada, mas o interior ainda úmido, macio, quase derretendo. “A omelete deve estar suculenta, quase como mal ada. Não pode estar seca”, ensina Rosilene. Depois disso, basta servir.
Cozinha de roça
Para quem está dando os primeiros os na cozinha mineira, aprender a técnica “pinga e frita” é fundamental. “É uma prática ancestral, amplamente utilizada na cozinha de roça, especialmente em Minas, desde o período colonial. Essa técnica nasceu da necessidade e da criatividade das cozinheiras nas senzalas e nas cozinhas rústicas das fazendas mineiras”, contextualiza o gastrólogo Rubens Freitas, que escolheu o tradicional frango com quiabo como referência.
A técnica consiste em selar os pedaços de frango até dourarem e, em vez de cobrir com água, acrescentar pequenas quantidades de água fervente aos poucos. No pinga e frita, a carne cozinha lentamente no próprio suco e gordura. É importante mexer sempre e deixar o caldo reduzir antes de repetir o processo.
Pinga e frita: 'É uma prática ancestral, amplamente utilizada na cozinha de roça, especialmente em Minas, desde o período colonial' - Rubens Freitas, gastrólogo
“O frango ganha uma textura suculenta e um sabor profundo, envolvido por um molho espesso, dourado e perfumado, cheio de história e memória afetiva. “É um ritual de paciência e afeto, ado de geração em geração pelas mãos de mães, avós e tias”, comenta Rubens.
O quiabo também exige certo cuidado. Tudo começa com a escolha do legume. Sua cor tem que estar em um verde intenso, sem manchas escuras, ressecamentos ou machucados. Para o tamanho, prefira os que tiverem entre 5cm e 8cm, pois os maiores tendem a ser mais fibrosos e duros.
“O próximo o é dobrar a ponta do quiabo. Se quebrar com facilidade, está macio e bom para o uso. Se dobrar sem quebrar, está duro e fibroso. Após a escolha e antes do preparo, lave os quiabos e seque um a um, evitando deixar que fiquem molhados. Deixe para cortar minutos antes do preparo. Esses os ajudam a reduzir a baba durante a fritura do quiabo”, explica.
A magia das quitandas
“Fazer quitanda também é fazer com técnica” – e das mais antigas. A afirmação é de Mariana Gontijo, do restaurante Roça Grande. Quitandeira com orgulho, ela escolheu destacar duas técnicas mineiras muito utilizadas com farinhas: “escaldar” e “sapecar”.
O biscoito de polvilho é uma das receitas que carregam a tradição da cozinha mineira
Ambas são comuns em preparos com derivados do milho e da mandioca e tem como objetivo alterar a textura das farinhas e deixá-las prontas para os próximos os de uma receita.
No escaldar, junta-se uma mistura quente de líquidos, como água e leite, e gordura (banha de porco, manteiga ou óleo) – que é despejada sobre a farinha. Já no sapecar, usa-se apenas uma base de gordura. A diferença parece sutil, mas altera o resultado. “No escaldar, o resultado confere uma consistência mais macia. No segundo, dá uma sensação mais sequinha, semelhante ao biscoito sequilho e ao biscoito de polvilho assado”, descreve Mariana.
“As duas técnicas são utilizadas, principalmente, com o polvilho e os fubás (moinho d’água, de canjica e mimoso). No caso do polvilho, elas desenvolvem a goma ao adicionar o líquido e no fubá dão uma pré-cozida, já que ele demora a absorver líquido. O segredo de ambas é que o líquido esteja em alta temperatura, no ponto de ebulição”, expõe Gontijo, que aprendeu os métodos em pesquisas empíricas com outras quitandeiras por Minas Gerais, e com a mãe e avós.
Riqueza de tradições
A quitanda é uma categoria alimentar criada e consolidada na cozinha mineira. E falar de cozinha mineira é falar de tradições. Embora, às vezes, transmitidos de forma oral e intuitiva, Mariana reforça a importância dos dois termos serem reconhecidos como técnicas legítimas da gastronomia. “Quitanda é tudo que se come na merenda, seja doce ou salgado. E se tratando dessas técnicas, que são tão ancestrais, estamos falando de Minas”, diz a quitandeira.
'Muitas vezes acabamos reforçando nosso colonialismo cultural, considerando como técnicas os métodos da cozinha internacional' - Mariana Gontijo, chef
“Muitas vezes, acabamos reforçando nosso colonialismo cultural, considerando como técnicas os métodos da cozinha internacional e as nossas, que são complexas, ricas e cheias de significado e tradição, como modos de fazer”, ressalta.
Pode parecer uma simples mudança ortográfica, mas ela diz que a diferença carrega um peso significativo. “É importante tratar isso como técnica para que as pessoas entendam que fazer quitanda, cozinha brasileira e mineira é também fazer com técnica”, conclui Mariana.
De forno e fogão
Ainda na cozinha mineira, é comum encontrar preparos que, mesmo sem nome estrangeiro, compartilham princípios técnicos da França. É o caso das broinhas de fubá, indicadas pela confeiteira Marina Mendes, fundadora do ateliê Sá Marina, que utilizam um método semelhante ao da massa choux – base de carolinas e bombas na pâtisserie sa.
'A broa infla, torna-se oca – não por falta, mas por generosidade' - Marina Mendes, confeiteira
“Há muita técnica nos bastidores da broa de fubá. É, inclusive, a mesma técnica que utilizamos na sua prima sa, a massa choux. Em ambas as massas, temos aquele interior úmido e oco contrastando com uma camada crocante em seu exterior”, descreve Marina.
Esse contraste se deve ao duplo cozimento (fogo e forno). “Primeiro, antes de receber os ovos na batedeira e levar ao forno, criamos a ‘panade’, que é a massa resultante do cozimento da água, manteiga e sal com as farinhas e o fubá”, revela a confeiteira. Esse duplo cozimento é o que traz o poder do fermento químico, que não existe na receita.
“A broa infla, torna-se oca – não por falta, mas por generosidade. São vazias para serem casa, para acolher, para somar. Pede café. Pede queijo. Pede goiabada. Pede creme de milho. E isso fala muito sobre Minas Gerais”, diz Marina.
Glossário de técnicas
Mise en place
- origem: sa
- serve para: qualquer preparo, do mais simples ao mais elaborado
- aplicação: agiliza a rotina, evita desperdícios e erros
Ponto noisette
- origem: sa
- serve para: iniciar o preparo de ovos, peixes e vegetais
- aplicação: realça o sabor e evita a queima dos ingredientes
Ponto baveuse
- origem: sa
- serve para: omeletes e ovos mexidos no estilo francês
- aplicação: garante textura cremosa e suculenta, evitando que os ovos fiquem secos ou borrachudos
Selagem
- origem: sa
- serve para: carnes, em geral, que serão cozidas ou assadas posteriormente
- aplicação: consiste em colocar a carne em uma a ou frigideira quente, apenas para dourar rapidamente todos os lados. Isso cria uma crosta na superfície que ajuda a preservar os sucos durante o cozimento
Deglaçagem
- origem: sa
- serve para: extrair e aproveitar os sabores concentrados que ficam no fundo da a após selar carnes ou legumes
- aplicação: consiste em adicionar um líquido na a ainda quente, logo após retirar o alimento principal. O líquido dissolve os resíduos, criando um molho
Cocção à inglesa
>> origem: raízes europeias, especialmente da Inglaterra
>> serve para: método de cozimento de legumes e hortaliças
>> aplicação: os vegetais são mergulhados em água fervente com sal e sem tampa
Branqueamento
- origem: sa
- serve para: preservar a cor, textura e sabor de legumes e verduras
- aplicação: consiste em mergulhar o alimento logo após o cozimento, em água fria. O choque térmico freia o cozimento e mantém a aparência viva dos vegetais
Pinga e frita
- origem: mineira
- serve para: frango caipira e carnes cozidas
- aplicação: cozinha a carne aos poucos, mantendo a suculência e concentrando os sabores. Ideal para dar textura dourada por fora e maciez por dentro
Escaldar e sapecar
- origem: mineira
- serve para: preparos como broas, biscoitos e outras quitandas
- aplicação: amolece e inicia o cozimento da farinha ao incorporar líquido quente
O encontro da França com Minas Gerais fica evidente nos modos de fazer da sobremesa
Panade
- origem: sa
- serve para: massas cozidas como massa choux, croquetes e broinhas
- aplicação: é uma base espessa formada ao cozinhar uma mistura de líquido (leite ou água), gordura e farinha. Ela deve ser mexida até se desprender da a, criando estrutura para receber os ovos e outros ingredientes. Garante leveza à massa
Duplo cozimento
- origem: sa
- serve para: massas leves como carolinas, bombas, broinhas e pães de queijo
- aplicação: a técnica começa com a panade para atingir uma massa lisa e brilhante. Ao assar, o vapor gerado pelos líquidos faz a massa inflar e formar uma cavidade interna, criando uma casquinha por fora e o interior úmido
*Estagiária sob supervisão da subeditora Celina Aquino