A vida depois do abrigo: poucas saídas além da rua
Aos 18 anos, jovens que cresceram em acolhimento saem tendo como opções a volta para conflitos em família, pouquíssimas repúblicas ou viver sem teto
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Siga noAos 16 anos, Jackson Santos cruzou as portas de uma casa de acolhimento em Belo Horizonte, sem saber por quanto tempo aquele seria seu teto. Aos 18, precisou sair, como manda a regra do sistema de abrigos. Foi quando se deparou com a pergunta: sair para onde? Para ele, foi possível encontrar uma república destinada a jovens nessa situação. Mas, para muitos outros, o destino pode ser a rua ou o retorno ao ambiente do qual foram afastados pela Justiça diante de situações de abandono, negligência ou violência por parte de suas famílias, como mostrou o Estado de Minas em sua edição de segunda-feira (10/03). Apenas na capital, 49 adolescentes abrigados chegarão à maioridade este ano, segundo a prefeitura. Vão se deparar com a mesma questão que angustiou Jackson.
Ele foi um dos primeiros a morar no projeto-piloto de república para jovens egressos do sistema de acolhimento, implementado na capital mineira em 2018 e até hoje o único do tipo em Minas Gerais, funcionando com uma unidade masculina e outra feminina. A experiência, no início, pareceu promissora: um espaço de transição, determinado pelo Sistema Único de Assistência Social, que atende até seis jovens, divididos por sexo, dos 18 aos 21 anos, onde ele poderia se estruturar pelos três anos seguintes.
Porém, percebeu que o ambiente não correspondia às suas expectativas, e a adaptação à vida adulta teve que ser mais abrupta. “Tive que me virar. Eu tinha mais bagagem, mais maturidade, a república não cabia no meu perfil”, conta.
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A chegada à vida adulta é um salto no escuro, um misto de medo, ansiedade e solidão, como define Jackson. Aos 19, ele começou a pagar aluguel e assumiu todas as responsabilidades de um adulto, mas sem o amparo de uma família. O trabalho e os estudos foram seu alicerce.
“Eu tinha contato com a minha família. Tinha convívio, mas não tinha afeto. Não queria voltar para o lugar onde sofri, onde tive várias violações de direitos”, lembra o rapaz, hoje aos 25 anos. Como ele, jovens acolhidos pelo Estado crescem com a certeza de que, cedo ou tarde, terão que partir. Afinal, a saída já está anunciada desde o dia em que chegam ao abrigo.
Vínculos sem segurança
Sem outra saída, muitos jovens que deixam o sistema de acolhimento retornam para as famílias das quais foram afastados pela Justiça. Não porque seja o melhor caminho, mas porque, sem e, vira a única opção. “Às vezes, nos últimos minutos do ‘segundo tempo’, surge uma possibilidade de restabelecer algum vínculo com a família de origem, e eles voltam, mesmo que aquele não seja um ambiente seguro, que não seja o melhor para eles”, conta Fernanda Farnesi, psicóloga da Casa dos Anjos, instituição no Bairro Santa Mônica, na Região de Venda Nova, em Belo Horizonte, que acolhe jovens de 12 a 18 anos.
Do outro lado, as famílias costumam receber esses jovens de volta sem muitos questionamentos. Adultos, são vistos como força de trabalho, uma nova fonte de sustento para a casa. “Algumas famílias enxergam a estadia do adolescente, da criança, na unidade de acolhimento como uma escolha individual. Há uma certa ignorância em relação ao que é uma medida de proteção, sem compreender as razões estruturais por trás disso. E aí quando esse jovem completa 18 anos, ele já está grande, já pode trabalhar, já pode ajudar a sustentar a casa”, descreve a psicóloga.
Os que tentam se virar sozinhos em vez de voltar ao convívio de parentes enfrentam barreiras. Alguns dividem aluguel com colegas, outros acabam em situação de rua ou são tragados pela marginalidade. “Infelizmente, o tráfico é uma ‘família’ que abraça. Se você não encontra acolhimento em outro espaço, lá encontra. Não tem critério”, diz a psicóloga.
Alguns desses jovens já vêm de histórias marcadas pelo crime; outros são empurrados para ele por não enxergar alternativas. “Eles entram por um viés de desespero, um ato de sobrevivência: 'Eu preciso me adaptar a este mundo'”, aponta Fernanda Farnesi. O resultado? Desfechos trágicos, homicídios, prisão, e a repetição de um ciclo violência.
Outro caminho possível são os abrigos para adultos e famílias, que, em Belo Horizonte, têm uma rede com 19 unidades. Mas esses espaços, voltados para uma diversidade de públicos – incluindo pessoas em situação de rua e outros contextos de vulnerabilidade – acabam por não oferecer a atenção especializada de que esses jovens necessitam.
“A transição para a vida independente exige mais do que um teto: pede acompanhamento técnico, e psicossocial e oportunidades reais de inserção na sociedade”, reforça Roney Assis, coordenador nacional de juventudes da Aldeias Infantis SOS, organização sem fins lucrativos dedicada ao cuidado e à proteção de crianças, adolescentes, jovens e suas famílias.
Traumas para toda a vida
Após o desligamento dos abrigos, os jovens que chegam à maioridade são acompanhados por até seis meses, período que pode ser estendido em alguns casos. Mas o e, feito por equipes dos Centro de Referência de Assistência Social, nem sempre acontece. Com profissionais sobrecarregados e uma política pública precarizada, muitos adolescentes acabam desassistidos. “Fomos criados como se fôssemos animais: presos, com hora para comer, dormir, alguém nos controlando. Mas autonomia, ninguém ensinou. E é uma outra violação”, desabafa Jackson Santos, ex-abrigado, hoje com 25 anos.
Entre esses jovens, há quem tenha – após o histórico de violações familiares – ado a vida inteira sob proteção do poder público, sem nunca chamar um lugar de lar. Fora dos abrigos, os traumas da institucionalização persistem, e moldam a forma como se relacionam. “A gente tem dificuldade de afetividade, de confiar, de pertencer”, desabafa Jackson.
Uma dificuldade que se traduz também em relações instáveis. “Tem gente que não consegue formar família, porque carrega esse abandono, esse sentimento de perda. De que tudo o que for acontecer não vai dar certo”, comenta o rapaz, que criou um movimento nacional, ao lado de outros jovens egressos do sistema de acolhimento, para lutar pelos direitos dessa parcela da população.
Obrigação no papel
Embora uma resolução do Conselho Nacional de Assistência Social determine que estados e municípios ofereçam repúblicas para jovens que deixam o acolhimento institucional, a realidade ainda está longe do ideal, já que poucas cidades cumprem a recomendação. No Brasil, há apenas 34 repúblicas, duas delas em Belo Horizonte.
Desde a época em que Jackson ou por uma dessas unidades, o modelo evoluiu e, hoje, é considerado uma referência pelos próprios jovens. “Nosso objetivo é prepará-los para a vida adulta independente, enxergando cada um como um ser único, com sonhos próprios”, afirma Marcelo Ribeiro Sequeira, coordenador técnico das Unidades de Acolhimento Institucional República para Jovens, desde abril de 2022.
O que dá certo
Com um sorriso no rosto, Anne Martins caminha pelos cômodos da república feminina em BH, no Bairro Santa Terezinha, na Pampulha, guiando a equipe de reportagem pela casa que hoje chama de lar, depois de ar três anos em uma unidade de acolhimento. No caminho, faz questão de destacar as plantas que cultiva para dar ao espaço um toque de aconchego.
Lá, as decisões são tomadas coletivamente, desde as normas internas até a organização financeira, um ensaio para a autonomia de que tanto se fala como uma necessidade a ser desenvolvida com esses jovens. “Aqui a gente cria uma grande família. É um lance de amor e ódio”, brinca ela, que se prepara para ir morar sozinha.
Entre as colegas, Anne é conhecida como o “homem da casa”, a responsável por resolver os problemas práticos do dia a dia. “Aqui eu aprendi a trocar gás, arrumar a... Se precisar, sou eu que faço, senão as meninas ficam esperando o coordenador aparecer, e uma semana depois ainda está lá, por fazer”, brinca.
Mais uma partida
Agora, aos 21 anos, Anne já deveria ter deixado o programa, mas, diante de períodos de desemprego e dificuldades financeiras, conseguiu um prazo maior para se reorganizar. A iminência da mudança traz um medo que a jovem diz nunca ter sentido. Pela primeira vez, ela, que se define como “uma pessoa difícil de se abrir”, quer manter os vínculos que conseguiu construir.
“Eu nunca tive tanto medo de ir embora, na verdade. É a primeira vez que sinto tanto medo de estar deixando as pessoas. Quem ou por acolhimento sabe o quanto é difícil olhar para um lugar e se sentir pertencente”, define a jovem. “A república trouxe essa parte de se sentir em casa, que é muito difícil para a gente que ou por esses problemas familiares, que foi para uma casa institucional”, conta. “Não vai ter mais aquela cumplicidade, aquela irmandade, não vai ter nem a diversão nem as brigas”, completa.
Atualmente, Anne trabalha com telemarketing, mas busca novas oportunidades, pois sabe que o salário atual não é suficiente para viver sozinha. Ela estuda filosofia à noite na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mas seu objetivo é mudar para letras, uma área mais próxima do que realmente deseja: comunicação.
Desde os 15 anos, a jovem sonha em trabalhar com publicidade e propaganda, mas, como o curso na UFMG é diurno, essa possibilidade ainda parece distante. “Brinco que sou 'proletariada', então não dá para estudar de dia”, comenta, com humor. O plano, até então, é se formar em letras e seguir carreira como redatora até conseguir se especializar na área que tanto deseja.
Nada disso ela construiu sozinha. Cada meta, cada o foi traçado junto à equipe da república, que trabalha com um modelo baseado na autonomia e no protagonismo dos jovens. Cada um elabora seu próprio plano de vida, com objetivos e revisões periódicas.
“Eles podem pedir mudanças sempre que sentirem necessidade, porque os sonhos podem mudar. O importante é que tenham clareza sobre os os para chegar onde querem. Isso também faz parte da autonomia. Eles decidirem sobre a própria vida. E a gente enxerga cada um com uma potência. Não vemos os problemas, não os definimos pelo sofrimento. A gente vê a força. Porque, se aram por tudo isso, é porque têm muita força”, ressalta Marcelo Ribeiro, coordenador da república.
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Lugar de recomeço
Mais reservado e de poucas palavras, Andert Hadad, de 19 anos, encontrou na república um recomeço após uma trajetória marcada por conflitos familiares e denúncias que o levaram ao acolhimento institucional aos 16 anos. Foi ali que ou a enxergar um novo futuro —um que incluía a universidade. Com incentivo da equipe, prestou vestibular, foi aprovado na UFMG e hoje cursa ciências atuariais, área da qual fala com entusiasmo. “Nunca foi algo que eu pensasse muito, cursar uma faculdade, não me chamava atenção. Mas me mostraram que, se eu estudasse, teria o a outras oportunidades. Quando encontrei esse curso, gostei bastante. É bem desafiador, não é nada fácil”, conta.
Desde que chegou à república, Andert tem traçado planos concretos para o futuro. Com apoio da equipe, já busca formas de financiar um imóvel. “Dá tempo de me formar e tentar conciliar uma coisa com a outra. Já penso na área em que quero trabalhar e estamos organizando um financiamento”, diz.
Do espaço onde vive hoje, ele conta que vai carregar um aprendizado que, agora, se tornou lema: “Desistir não é uma opção”. “Quando a gente pensa que não dá mais jeito, dá. Pode parecer tudo bem difícil, perdido, mas sempre tem uma oportunidade. Isso é o que eu acho que a república representa para mim”, reflete.
Poderia representar para muitos outros, se o sistema, como prevê a lei, fosse o suficiente para todos.