Uma mulher de 63 anos foi resgatada em Belo Horizonte depois de ar mais de três décadas em condição análoga à escravidão. Ela trabalhava na casa de um advogado sem receber salário, apenas em troca de moradia e comida. O resgate foi realizado neste mês por auditoras fiscais do trabalho, em uma operação que integra a Campanha Nacional pelo Trabalho Doméstico Decente.
A identidade da trabalhadora e o bairro onde o resgate aconteceu são mantidos em sigilo para protegê-la dos riscos e das violências que ainda enfrenta no pós-resgate. Segundo a Auditoria Fiscal do Trabalho (AFT), vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), ela cozinhava, limpava, lavava, ava roupas e cuidava das crianças da casa. Tudo isso sem salário, sem jornada definida, sem direito a finais de semana, feriados ou férias.
O quadro encontrado pela equipe incluía episódios de violência psicológica, assédio moral e condições degradantes de moradia. A mulher vestia roupas usadas doadas pelos empregadores, e ainda dormia em um cômodo minúsculo, nos fundos da casa, sem ventilação adequada.
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Quando questionados, os empregadores afirmaram que ela era “tratada como da família”. Mas nem mesmo a própria vítima se reconhecia como membro da família.
A auditora fiscal Cynthia Saldanha, subcoordenadora do combate ao trabalho análogo ao escravo e coordenadora regional do projeto de fiscalização do trabalho doméstico em Minas Gerais, explica que esse é um discurso recorrente entre empregadores flagrados em situações de exploração. "A frase que a gente mais ouve é: 'Ela é como da família'. Mas na verdade são privadas de todos os direitos que os demais membros da família têm", aponta.
O perfil da trabalhadora resgatada reflete o cenário de violações que marca historicamente o trabalho doméstico no Brasil: mulheres pretas ou pardas, com baixa escolaridade, vínculos familiares frágeis ou rompidos, e que muitas vezes foram “doadas” ainda na infância a outras famílias.
A operação que resultou no resgate começou em fevereiro e foi concluída em abril, mês em que se celebra o Dia Nacional da Trabalhadora Doméstica. A ação foi realizada em parceria com o Ministério Público do Trabalho e apoio da Polícia Militar, além da Delegacia Sindical do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho em Minas Gerais (DS-MG/SINAIT).
As denúncias de trabalho análogo ao de escravo podem ser feitas pelo site do Governo Federal. A ação faz parte de um esforço permanente da Auditoria Fiscal do Trabalho para promover condições dignas e erradicar práticas escravistas que ainda persistem no país.
Fiscalização do trabalho doméstico
O resgate da vítima ocorreu em meio às fiscalizações da Campanha Nacional pelo Trabalho Doméstico Decente, que neste ano destaca a importância do controle de jornada das trabalhadoras como um direito essencial.
Ainda sem dados consolidados, já que a campanha se encerra em maio, a Auditoria-Fiscal informou ao Estado de Minas que já identificou empregadas domésticas sem registro formal, ausência de controle de jornada, salários e 13º pagos com atraso, férias não comunicadas previamente e FGTS recolhido fora do prazo legal.
Em Minas Gerais, a fiscalização no trabalho doméstico se intensificou desde o ano ado e ocorre de forma contínua, especialmente em cidades como Belo Horizonte, Nova Lima, Juiz de Fora e Uberlândia. As ações acontecem em condomínios verticais e horizontais, com vistorias que orientam empregadores e, quando necessário, aplicam sanções.
Muitos empregadores, segundo Cynthia Saldanha, demonstram surpresa ao serem fiscalizados em suas casas. “Os próprios empregadores se surpreendem. Dizem: ‘Eu não sabia que vocês fiscalizam casas, só empresas’. A gente tem conseguido marcar uma presença fiscal em uma atividade que nunca foi fiscalizada. Isso já é um ganho”, avalia.
Parte essencial dessa fiscalização é a checagem da jornada de trabalho. Pela Lei Complementar 150, de 2015, o empregador deve registrar a jornada da doméstica no eSocial, anotando entradas, saídas e intervalos, além de pagar ou compensar horas extras.
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Na prática, porém, essa regra é frequentemente descumprida. “Eles até apresentam folhas de ponto. Mas todas com os horários 'britânicos': entrada todo dia às 8h, saída às 14h, sem variação. E a gente sabe que aquilo ali é um ponto fictício, inclusive ele não tem validade jurídica, nem para fiscalização e nem para uma eventual ação trabalhista, porque ninguém chega todo dia 8h e sai todos os dias às 16h. As variações de horário devem aparecer nesse controle de ponto”, explica Cynthia.