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Marcelo Moutinho lança livro de crônicas

Leia duas histórias de 'O último dia da infância',mais recente obra do escritor carioca e vencedor do Prêmio Jabuti em 2022

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Hilda Hilst ao telefone


Quando lancei o primeiro trabalho — uma seleta de contos ruins que tentavam emular Caio Fernando Abreu —, minha irmã insistiu que eu mandasse um exemplar para a Hilda Hilst. Lilian sabia que eu era fã dos textos da Hilda e tinha um amigo que, à época, morava na Casa do Sol, onde a poeta hospedava os amigos em temporadas repletas de conversas, drinques, astrologia, ciência, filosofia, música e literatura.


A obra da escritora me chegara por intermédio justamente do Caio. Ao se conhecerem, num curso de jornalismo que a revista Veja promoveu em 1968, os dois logo se tornaram próximos. No ano seguinte, Caio partiu de mala e cuia para a Casa do Sol. Ficou muitos meses por lá, voltando outras vezes em agens mais rápidas.


A Casa do Sol, aliás, marca um momento decisivo na vida do autor gaúcho. A história se soma a muitas outras cujo centro é o poder mágico da figueira que havia no local. Certa noite de lua cheia — quando a capacidade da árvore, segundo Hilda, alcançava intensidade máxima —, ele se aproximou e fez dois pedidos. Queria que sua voz engrossasse e também ganhar um concurso de que estava participando. Na manhã seguinte, contam o próprio e pelo menos três testemunhas, o sortilégio se deu. Caio acordou com voz de barítono.

“Me sinto felicíssimo,isso resolve praticamente todos os meus problemas,posso fazer o que quiser, falar com quem quiser, ninguémvai rir nem achar esquisito”, ele reportaria aos pais, em carta enviada pouco depois. O segundo pleito foi igualmente atendido. “Inventário do irremediável”, seu livro de estreia, conquistou o Prêmio Fernando Chinaglia, da União Brasileira de Escritores.


“Nós sempre fomos muito ligados”, comentou Hilda em artigo enviado para O Estado de S. Paulo pouco antes da morte de Caio. “Ele empenha a vida, a morte, a doença, tudo o que tem em sua literatura. A tentativa do escritor é sempre essa: dizer a sua pequena verdade para o outro”.


O vínculo tão afetivo, tão vigoroso, entre artistas referenciais me causava iração. Mais do que isso, uma espécie de fome. No tempo em que minha irmã sugeriu a expedição do exemplar, eu era um escritor iniciante e sem contato algum com meus pares ou com o mundo literário. Parecia-me incrível descobrir a possibilidade de troca, amorosa e estética, entre dois criadores. Esse antídoto possível para a solidão.


Sem muita expectativa, fiz uma dedicatória e remeti o livro pelo Correio. Pus, no envelope, um papel com meu telefone escrito a caneta.


aram-se alguns meses, eu havia me mudado para uma quitinete — a primeira experiência de morar sozinho — e já nem lembrava do envio. Um dia, o telefone lá de casa tocou.


— Oi, Marcelo.


— Quem fala?


— É a Hilda.


— Que Hilda?


— A Hilda Hilst. Recebi seu livro.


Fiquei paralisado de tal forma que não consigo me recordar de nada que ela disse durante a conversa de poucos minutos. Só das palavras finais:


— Continue escrevendo. Sempre.


A frase ficou encrustada dentro da minha cabeça como a forma que dorme dentro da pedra.


ados alguns anos, usaria versos da Hilda como epígrafe de “Somos todos iguais nesta noite”: “A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos/ E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima/ Olho d’água, bebida. A vida é líquida”.


Generosa e mítica. Assim era Hilda Hilst.

Mapa íntimo


Sempre acreditei que os bairros onde moramos ajudam a burilar nossa personalidade. No homem de 52 anos que sou hoje, trago bastante de Madureira, a matriz dessa estação tão decisiva que é a infância. Também algo da Barra da Tijuca. Outras porções vêm da Urca, do Jardim Botânico, de Laranjeiras, da Lapa, de Botafogo. Na síntese de uma soma nem sempre redonda de peculiaridades, o desenho se esboça.


Os bairros se definem igualmente assim, como um breviário de suas ruas. Cada qual com sua topografia, suas manhas, sua psiquê — atributos que podem ou não reverberar nos nomes que elas carregam.


Morei na Avenida Sernambetiba, hoje chamada de Lucio Costa. O antigo título fazia referência ao sernambi, pequeno molusco que era encontrado em profusão naquela área. A coesão entre a denominação e o perfil da via, debruçada à beira-mar, prescindia de grandes explicações. Mas o sernambi sumiu dali faz tempo. Quando foi sancionada a homenagem ao arquiteto e urbanista Lucio, ninguém mais tinha ideia da sintonia entre o nome de outrora e o ecossistema local. Que, aliás, vem sendo goleado pela ocupação humana, como bem sabem — ou sabiam — os tatuís.


Antes disso, minha casa ficava na Carvalho de Souza. A rua liga Madureira a Cascadura, ando sob o Viaduto Negrão de Lima, e seu trajeto corta as duas frações daquela que já foi chamada de Capital dos Subúrbios. De um lado, a região mais residencial, povoada de casas e pequenos edifícios; do outro, o comércio pujante. O senhor Carvalho de Souza, por mais que pesquisasse, não consegui descobrir de onde veio ou o que fazia. Nem mesmo no referencial “Histórias das ruas do Rio”, de Brasil Gerson, há menção a ele. E, ao contrário do que acontece na Zona Sul da cidade, as placas indicativas das ruas do subúrbio costumam trazer apenas o nome do logradouro, sem qualquer informação sobre o sujeito homenageado. Mais um sinal da secular diferença de tratamento pelo poder público.


Nos anos em que vivi na Urca, ouvi muito o relato segundo o qual a Avenida São Sebastião tinha sido a primeira rua da cidade. Balela. De fato, foi na vila fortificada aos pés do Morro Cara de Cão, onde ficaria o bairro, que Estácio de Sá plantou os fundamentos do Rio de Janeiro. A futura avenida se assentou sobre o caminho que unia a enseada da Baía de Guanabara ao Forte São João. Mas a via inaugural da cidade, segundo o informe oficial, é mesmo a Rua da Misericórdia, no Centro.


A São Sebastião deu início à minha “fase das ladeiras”, que continuaria na Rua Faro. Se as duas têm algo em comum, fora a acentuada inclinação, é a sinuosidade. São vias bucólicas, sossegadas, que talvez servissem como um contraponto ao meu gênio inquieto. Localizada no meio do Jardim Botânico, a Faro deve seu nome a Luís de Faro, antigo dono de uma chácara que se localizava naquele ponto, e nunca fez muita questão de assumir contornos urbanos. Lembra uma rua interiorana, onde o silêncio é quebrado apenas pelo canto dos arinhos — ou as investidas dos saguis em busca de frutas.


Terceira ladeira dessa cronologia particular, a Almirante Salgado se distingue igualmente pela tranquilidade. Nasce na Rua das Laranjeiras, com seu nervoso trânsito de carros e pessoas, mas vai ganhando quietude à medida que a rampa é vencida pelo caminhar. Curiosamente, um oposto à trajetória de João Mendes Salgado, o tal almirante. Mais conhecido como Barão de Corumbá, ele teve uma vida febril. Lutou na Guerra do Paraguai e, graças à coragem demonstrada nesse e em outros combates, recebeu a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul e a Ordem da Legião de Honra.


Também a Rua Riachuelo, para onde me mudei em seguida, assumiu o atual nome por questões militares. No caso, a batalha naval entre o Brasil e Paraguai, que aconteceu em 1865, um ano antes do rebatismo. A via até então se chamava Rua de Matacavalos por uma razão prática: ali havia atoleiros que dificultavam o trânsito dos animais, muitas vezes levando-os ao sacrifício.


A Riachuelo começa na Praça Cardeal Câmara e termina na Rua Frei Caneca. Em seu percurso, encontramos oficinas, mercados, botecos, salões de beleza, farmácias, hotéis, lojas de tintas, de roupas, de colchões… É um verdadeiro furdunço, entremeado por prédios e moradias de personagens célebres da literatura brasileira, como o machadiano Bento Santiago, do romance “Dom Casmurro”.


Fiquei por cinco anos, e bebi por dez, na Lapa. De lá sairia para aportar onde moro: a Rua Álvaro Ramos, em Botafogo. Já com o nome corrente — um tributo ao cirurgião e destacado membro da Academia Nacional de Medicina —, era um local conhecido pela fartura de borracharias. Então chegaram os bares, e os pneus foram substituídos por copos americanos e tulipas de chope. Fugi da boemia, mas ela correu atrás de mim.

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Cada uma dessas ruas, para além dos diferentes títulos, descrições e enredos, é um espelho onde minha história reluz. O pique-pega sobre o piso de cacos, o puçá cheio de siris ao fim da tarde, os saraus defronte a baía, a luta para subir carregando as compras, o strudel do Bar Brasil, o nascimento de Lia. No emaranhado de linhas que aparentemente não se conectam, vislumbro um mapa íntimo. O labirinto que riscamos com nossos próprios os. Onde tantas vezes nos perdemos e um dia, quem sabe, possamos nos encontrar.


SOBRE O AUTOR

Nascido no Rio de Janeiro em 1972, Marcelo Moutinho recebeu o Prêmio Jabuti 2022 na categoria Crônica com“A lua na caixa d’água”(Malê) e o Prêmio Clarice Lispector 2017, da Fundação Biblioteca Nacional, com o livro de contos“Ferrugem”(Record). É autor, também, de“A palavra ausente”(Malê, 2022),“Rua de dentro”(Record, 2019), “Na dobra do dia”(Rocco, 2015) e da biografia“Estrela de Madureira – A trajetória da vedete Zaquia Jorge, por quem toda a cidade chorou”(Record).


“O último dia da infância”
• De Marcelo Moutinho
• Malê Editora
• 172 páginas
• R$ 62

“Vamos itir que haja o último dia da infância. Quanto à minha, tenho a impressão de que não houve. Quase sempre fui um velho, eu que ainda sou menino. Mas vamos itir que tenha havido esse último dia.”

Antônio Maria
(uma das epígrafes do livro de Moutinho)

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