Livro faz coletânea dos relatos de quem vê a guerra de perto
Em ‘Ucrânia – Diário de uma guerra’, escritor Andrei Kurkov narra sua vida em um país sob constante ameaça também do ponto de vista cultural
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Siga noJá por três anos se arrasta em território ucraniano uma guerra que conta civis mortos na casa das dezenas de milhares. O conflito iniciado com (mais uma) invasão russa em 2022 não é exatamente uma novidade na região, que na verdade calcula os infames aniversários bélicos a partir de 2014, como explica Andrei Kurkov, um dos mais importantes autores contemporâneos do leste europeu, em entrevista ao Estado de Minas.
O escritor acaba de ter lançado no Brasil o seu livro “Ucrânia – Diário de uma guerra” (Carambaia), coletânea de relatos que colocam o leitor no calor dos momentos que antecederam os bombardeios e esmiúçam a vida em um país em disputa em campos de batalha físicos e simbólicos.Os diários de Kurkov foram lançados originalmente em dois volumes no Reino Unido e foram unidos em quase 400 páginas pela Carambaia na edição brasileira. Dia após dia, a partir dos relatos de uma Kiev que já respirava a tensão pela iminência da invasão russa em fevereiro de 2022, o ucraniano narra com riqueza de detalhes o cotidiano de um país em guerra.
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Sofisticados e elaborados a partir da percepção de um renomado escritor e roteirista, os diários de Kurkov são capazes de oferecer ao leitor tanto uma perspectiva crua do conflito sangrento e angustiante como uma análise mais complexa sobre o quanto da simbologia e cultura ucranianas estão em jogo diante da ofensiva de Vladimir Putin. Acompanhar a rotina da guerra oferece um ponto de vista diferente de um conflito que costuma ser descrito sob a lente de análises históricas e geopolíticas que colocam as mortes em perspectiva com um conflito que se arrasta desde a União Soviética e, por que não, da Rússia czarista.
Na entrevista ao Pensar, o escritor vencedor do Prix Médicis (França), Halldór Laxness International Literary Prize (Islândia) e duas vezes finalista do International Booker Prize (Inglaterra), em 2023 e 2024, falou sobre sua preocupação com o futuro da língua ucraniana, destacou sua percepção sobre o mercado literário no país em guerra e as perspectivas para a política internacional com a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos.
“É difícil escrever ficção quando você está em guerra”
Entrevista Andrei Kurkov
Além do fato de que esta guerra, a guerra atual, começou em 2022, acredito que há uma sensação de um conflito perene entre a Ucrânia e a Rússia. Como você acredita que seu livro aborda essa questão?
Essa é uma sensação comum entre o povo ucraniano. Podemos falar sobre três anos desta guerra, mas também podemos falar sobre a guerra desde 2014 ou desde os anos da União Soviética. Quero dizer, todos os ucranianos contam os anos da guerra a partir de 2014.Mas, claro, ucranianos instruídos sabem que a guerra contra a independência e a identidade ucraniana foi iniciada por Pedro, o Grande, em 1720. Então, isso foi há mais de 300 anos. Poucas pessoas sabem que até 1654 a Ucrânia era um território independente. E foi em 1654 que o chefe de estado ucraniano Bohdan Khmelnytsky pediu ajuda militar à Rússia contra a Polônia.
E esse foi o começo do fim da independência. Mas, durante todos esses 300 anos, a Rússia tentou assimilar os ucranianos. E a Ucrânia era uma das principais partes do Império Russo. Quando o Cristianismo chegou ao Leste Europeu, isso se deu primeiro em Kiev, quando Moscou ainda não existia. Além disso, poucas pessoas entendem que Moscou foi criada por uma família nobre de Kiev, por Yuri Dolgorukiy, que está enterrado em Kiev.
Seu livro e sua descrição do cenário falam sobre como a guerra atual ajuda a fortalecer os símbolos nacionais na Ucrânia. Como você avalia o impacto da guerra nesse sentido?
A sociedade está muito mais consolidada agora do que estava antes da guerra. Mas, ao mesmo tempo, temos uma Ucrânia diferente agora, porque hoje temos 7 milhões de ucranianos que são refugiados no exterior, e muitos deles não voltarão. Eles irão se assimilar e permanecerão na Alemanha, nos EUA, no Canadá. Temos meio milhão de crianças ucranianas que frequentam escolas estrangeiras agora.Para essas crianças, o idioma estrangeiro substituirá o idioma ucraniano em um ou dois anos.
Temos 6 milhões de deslocados internos, pessoas que foram para outras regiões da Ucrânia. Ou seja, se você fizer a mesma pergunta para cada um desses três grupos — e o terceiro grupo são as pessoas que ainda vivem em casa, como eu —, você pode ter respostas um pouco diferentes. Mas, claro, a nação está sendo moldada por essa guerra. Quero dizer, se falarmos sobre pessoas que são patriotas, que conectam seu futuro à Ucrânia, elas veem a Ucrânia com outros olhos agora, do que viam antes dessa guerra.
O livro registra situações da vida na Ucrânia antes e durante a guerra. Como você vê a importância dos registros na vida cotidiana dentro de um grande conflito? Não apenas para os ucranianos, mas para o mundo inteiro ver.
Quando comecei a ler seriamente, por volta dos 16, 17, 18 anos, eu adorava ler memórias e diários de pessoas que viveram há 100 anos, para entender a vida, porque eu não conseguia entender a vida pelos manuais escolares de história, porque a vida é feita de detalhes. E eu acho que, na verdade, o que está sendo feito agora pelos escritores ucranianos — e pela maioria dos escritores — é que eles escrevem ensaios e não-ficção, mas não romances.
Então, eles descrevem o que está acontecendo. É como crônicas, que talvez ajudem a próxima geração de ucranianos a entender o que aconteceu hoje. Porque, por exemplo, eu tenho escrito há vários anos romances sobre 1919, uma guerra civil na Ucrânia após a revolução de 1917.Eu leio arquivos, mas encontro muito mais informações nos diários, nas memórias e nos documentos manuscritos. Então, eu espero que talvez alguém, no futuro, use meus diários como base para um romance ou apenas saber sobre os detalhes da vida cotidiana.
O livro trata sobre como a cultura clássica russa é disseminada pelo país como um movimento de soft power durante a guerra. Você acha que isso faz parte de uma estratégia que o governo russo tenta impor?
Eles já estavam impondo isso há muitos anos e não apenas na Ucrânia. Por exemplo, em Roma, não muito longe da Escada Espanhola, na parte antiga da cidade, há um parque bonito e diferentes países doaram monumentos de seus escritores para esse parque. Acho que os russos doaram dois ou três monumentos para cada canto do parque, com Maxim Gorki, Tolstoi e Dostoiévski. E acho que Pushkin também está lá. Quero dizer, tivemos 100 ruas Pushkin na Ucrânia até recentemente.
Mas não tínhamos ruas nomeadas em homenagem aos escritores ucranianos que foram mortos por Stalin. E o que aconteceu recentemente nos territórios ocupados, talvez você tenha ouvido falar do nome Taras Shevchenko. Este é o principal poeta nacional ucraniano. Então, seus monumentos foram removidos em algum lugar. Mas, em Lugansk, o monumento permaneceu por mais de um ano, até que os russos colocaram um novo nome no monumento. Eles escreveram “poeta russo Taras Shevchenko” e depois decidiram removê-lo. Então, ele desapareceu.
O livro aponta que a sociedade ucraniana cresceu com uma desconfiança em relação à informação disseminada pelos meios de comunicação tradicionais e pelo governo. Como você acha que a guerra influenciou a relação entre o governo e o povo? Porque isso é algo global, mas acredito que na guerra torne-se realmente específico.
Na Ucrânia, as pessoas educadas não confiam nos meios de comunicação istrados pelo governo. E temos escândalos constantes com o único canal de notícias de TV, que é istrado pelo escritório do presidente Zelensky. E, na verdade, a maioria das pessoas agora obtém informações pela internet. Os jovens não assistem televisão e poucas pessoas leem jornais. Então, os canais no Telegram ou os jornalistas quando funcionam como blogueiros são muito mais importantes para os leitores comuns, as pessoas comuns. E eu não acho que haverá mais confiança na mídia governamental no futuro.
Você acha que essa guerra influenciou a percepção dos ucranianos sobre sua própria história e acredita que no futuro haverá mais nacionalismo no país?
Se falarmos sobre a história, temos dois grupos de historiadores e cada grupo tem seu próprio público, porque temos historiadores objetivos que tentam escrever livros sobre o que realmente aconteceu e temos historiadores patriotas, que são nacionalistas e que querem evitar as páginas negativas da história, fazendo ênfase nas histórias positivas ou inventadas, às vezes criando lendas ou alterando os fatos. Então, cada um desses grupos publica livros, dá palestras e tem seus públicos. Ou seja, nesse sentido, a história continuará sendo muito importante. Mas cada ucraniano decidirá por si mesmo se quer a história real ou a história patriótica.
Você continua escrevendo os diários e planeja lançá-los?
Sim, estou escrevendo o próximo livro de ensaios, que são escritos como diários. E a primeira edição será em inglês, em Londres, no próximo verão, provavelmente em julho ou agosto.
Acabamos de ter a volta de Donald Trump à Casa Branca. Como você acha que isso vai impactar a guerra na Ucrânia?
Isso definitivamente impactará a situação ucraniana e muitos ucranianos estão muito preocupados. Na verdade, seus últimos sinais foram ambíguos. Quero dizer, ele disse a Putin que, se Putin não concordasse com as negociações de paz, ele iria reduzir os preços do petróleo, etc. Ao mesmo tempo, ele disse que a Ucrânia é culpada pela guerra, porque a Ucrânia não precisava se aproximar da OTAN. Então, ele está enviando mensagens muito estranhas e contraditórias. Ao mesmo tempo, ele agora ordenou a suspensão do financiamento dos projetos financiados pela USAID na Ucrânia. E a USAID estava, na verdade, financiando projetos de ajuda humanitária, mídia livre e muitos projetos que são muito importantes para a sociedade ucraniana. E as pessoas aqui acham que talvez isso seja interrompido de vez, então ele não renovará.
Mas, ao mesmo tempo, suas declarações geopolíticas sobre a Groenlândia, o Panamá, o Canadá, quero dizer, ele parece exatamente com o Putin. Quero dizer, Putin anexou a Crimeia, Trump quer anexar a Groenlândia. É porque ele gosta da forma como o Putin lida com a política internacional, ou é um sinal de que ele quer enviar de que ele é tão louco quanto Putin e é melhor não discutir com ele?
Qual a principal mensagem que você gostaria de ar para os leitores brasileiros?
Em primeiro lugar, acho que todo país no mundo é importante. Muitos países têm relações históricas. O Brasil tem uma longa tradição de imigração ucraniana desde o século 19. E, de modo geral, eu diria que um dos melhores diplomatas estrangeiros na Ucrânia recentemente foi o embaixador brasileiro Norton Rapesta. Ele ficou aqui sob fogo, sob os ataques de obuses, em seu apartamento não muito distante de mim, e ele estava motivando os ucranianos a não terem medo da guerra.
Então, acho que os leitores brasileiros que são curiosos poderão entender muito melhor os ucranianos comuns, a vida ucraniana e as aspirações ucranianas através do meu livro. E provavelmente saberão muito mais sobre a história ucraniana, porque tentei explicar vários pequenos episódios que moldaram nossa mentalidade ucraniana e nossa história, como somos hoje.
“Ucrânia – Diário de uma guerra”
• Andrei Kurkov
•Tradução de Marcia Vinha e Renato Marques
• Editora Carambaia
• 392 páginas
• R$ 139,90