Amigos lembram o amor literário de Letícia Malard
Depoimentos de Silviano Santiago e Nádia Gotlib destacam a vida entre livros da professora emérita da UFMG, que morreu aos 88 anos
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Siga noUma vida entre livros. Assim foi a trajetória de Letícia Malard, nascida em Pirapora em 1936 e que faleceu em Belo Horizonte na última segunda-feira. Professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais, ela se tornou referência incontornável nos estudos de literatura brasileira com estudos e críticas.
O ensaio “Hoje tem espetáculo: Avelino Fóscolo e seu romance”, publicado em 1987 pela editora UFMG, é considerado um marco na redescoberta da relevância de “A capita”", o primeiro autor a abordar a mudança da sede istrativa do governo mineiro para Belo Horizonte. Pela mesma editora, lançou os ensaios “No vasto mundo de Drummond” (2005) e “Literatura e dissidência política” (2006), além do romance “Divina dama”.
Quando recebeu o título de Professora Emérita da Universidade Federal de Minas Gerais, foi saudada pelo colega e amigo José Américo Lima, que a conheceu como aluno da escola pública até a orientação no doutorado.
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O discurso destacou a coragem da homenageada, definida como “pessoa ardorosa, vibrante, ágil, corajosa, esperta (no melhor sentido da palavra), que não se abateu quando a situação das liberdades no país era muito pior do que a atual, não desistiu da força de seu próprio pensamento, não abriu mão de ensinar Literatura Brasileira pelas palavras e textos do marxista Nelson Werneck Sodré, quando toda a comunidade se alheava das dores do presente pelo mergulho no debate estruturalista. Eu não tenho dúvidas: é de coragens semelhantes à da professora Letícia Malard – certamente houve outras por este país afora – que se tornou possível a realidade que hoje vivemos.”
Letícia Malard também colaborou com este Pensar com entrevistas e artigos. Aluna de Eduardo Frieiro, ela lembrou em 2019 do convívio com o autor de “A ilusão literária” numa reportagem a respeito do homenageado daquele ano pelo Festival do Livro na Rua (Flir): “O mais marcante era sua cultura literária. Lia muito, lia tudo em espanhol, português, francês, latim, italiano e inglês.
O impressionante: sendo autodidata e só tendo feito a metade do Curso Fundamental, era um monumento literário. Como professor não se mostrava rigoroso, de forma alguma, mas tinha uma peculiaridade: nunca dava a nota máxima, mesmo quando o aluno merecesse, e confessava isso. Nas aulas era supereducado, demonstrava apreço pelos alunos e gosto pela profissão. Nós costumávamos chamá-lo afetivamente de Frieirinho, fora das aulas, aliando sua baixa estatura física à idade avançada e ao modo cortês no tratamento pessoal”, contou na entrevista.
Um ano depois, Leticia voltou a colaborar com o Pensar, desta vez ao analisar o segundo romance da autora de “Tudo é rio”. “Gosto muito da literatura da Carla Madeira”, afirmou a professora, em maio de 2020, ao enviar artigo sobre “A natureza da mordida”, lançado pela Record em 2018. Por meio das páginas do jornal, a professora já aposentada retomava o diálogo crítico com a produção de autores mineiros contemporâneos, como fizera nos anos 1980 em uma das primeiras resenhas de “Stella Manhattan” publicada neste Estado de Minas e que destacava o romance de Silviano Santiago como um dos melhores lançamentos do ano. Tudo porque, como enfatizam os amigos e os ex-alunos, Letícia Malard dedicou sua existência aos atos de ler e de escrever, de ensinar e de aprender.
Palavras para quem amava as palavras
“Faceta secreta”
Silviano Santiago
Especial para o EM
Não estranhem. Em 1957, é no décimo-nono andar do edifício Acaiaca que me torno bom amigo da Letícia Malard. Sim, refiro-me ao gigantesco arranha-céu, perto da praça Sete, que dá vista para as imponentes escadarias da Igreja de S. José.
Loucura, originalidade ou pobreza da então universidade brasileira? Lá nos píncaros das montanhas se localiza a sede da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Poucos anos depois, felizmente, a Faculdade de Letras se transferirá para um prédio na rua Carangola, Santo Antônio. Um belo futuro a aguarda.
Até aí nada de novo. Estamos falando da formação em Letras da notável professora de Literatura Brasileira, hoje professora emérita por virtude não só dos ensinamentos em cursos, orientações de tese e simpósios, como da sólida formação em crítica literária de fundo marxista-leninista e da pesquisa e publicação de importantes estudos em livros e revistas especializadas.
Fiquei encantado, podem imaginar, quando, solicitada por este jornal, Letícia escolhe o então escandaloso romance “Stella Manhattan” para figurar entre os dez melhores livros do ano de 1985.
Mas a nossa amizade já tinha se solidificado em 1957 porque a mocinha Letícia tinha decidido ser atriz de teatro. Era eu então um olheiro do Teatro Experimental, fundado em 1956 pelo Carlos Kroeber e o Jota Dângelo.
O grupo estreia com a peça "A voz humana", de Jean Cocteau, traduzida por Laís Corrêa de Araújo, com direção do Carlão e a incrível interpretação de Magda Lenard, então atriz de novelas. A voz humana se transformou há pouco em curta de Pedro Almodóvar, interpretado por Tilda Swinton.
A vanguarda internacional já estava na escolha da peça de estreia. E continuará com as encenações de “Nossa cidade”, de Thornton Wilder, “Fim de jogo”, de Samuel Beckett e “Crime na Catedral”, de T. S. Eliot. Só papa-fina.
“Nossa cidade” tinha uma vantagem. Encenação barata. Duas sólidas escadas de pintor, abertas no palco e frente a frente, se faziam de prédio e de janela de onde o par amoroso da peça trocava juras. Rapazes e moças, universitários, se apresentam para interpretar a Emily, filha do dono do jornal local, e o George, o filho do doutor Gibbs.
Para representar o par amoroso da peça, no auditório do Colégio Izabela Hendrix, são escolhidos a futura professora emérita Leticia Malard e o não menos famoso professor e sociólogo Theotonio dos Santos Jr. Selava-se, no palco do colégio presbiteriano belo horizontino, a ficção de um par amoroso de universitários e, na história das ideias no Brasil, as futuras presenças de dois grandes intelectuais da esquerda mineira, representantes da nossa geração.
SILVIANO SANTIAGO, integrante da Academia Mineira de Letras, é autor de livros como "Em liberdade", "Menino sem ado" e "Mil rosas roubadas"
“O legado é a prova de uma vida entre livros”
Nádia Batella Gotlib
Especial para o EM
Professora. Pesquisadora. Ensaísta. Crítica. Historiadora da literatura. E poderia complementar essa listagem, mencionando demais atividades que exerceu ligadas ao campo das letras e da cultura, sempre objetivando a divulgação do conhecimento, com respeito pela seriedade e importância do ensino público. Atenta ao trabalho cuidadoso do 'ler e escrever', acompanhou centenas de alunos ao longo de sua sólida carreira como dedicada e entusiasmada professora.
E percorreu diferentes séculos povoados de escritores e pensadores, distribuindo visões fundadas em consciência alerta aos os de nossa história, de que ressaltava tanto os perigos, ameaças, quanto as direções possíveis voltadas para necessárias mudanças. Tive o privilégio de acompanhar parte desse percurso, numa convivência de colega que muito me ensinou, e que se transformou em laço de sólida amizade, envolvida inclusive pela alegria de finais de tardes em barzinhos de Belo Horizonte, onde reinaram conversas bem-humoradas, de se nunca mais esquecer. “Não me canso da vida entre livros", afirma Lutécia, personagem de romance que resume a vida de sua autora, Letícia. Seu legado é uma prova dessa vida. Ele nos acompanha. Felizmente.”
NÁDIA BATELLA GOTLIB, professora de literatura brasileira na USP, é autora de livros como "Clarice na memória de outros", "Clarice: uma vida que se conta" e "Teoria do conto"