PENSAR

O soco no olho que destruiu a amizade entre dois grandes escritores

Mario Vargas Llosa bateu em Gabriel García Márquez, mas os dois escritores nunca explicaram o motivo do murro

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O escritor colombiano Gabriel García Márquez morreu aos 87 anos, em 17 de abril de 2014, sem revelar o motivo. Agora, o peruano Mario Vargas Llosa se despediu da vida aos 89 anos, no último domingo, também sem jamais revelar o motivo. Fato é que esses dois gigantes latino-americanos, premiados com o Nobel de Literatura, vinham de uma amizade de uma década e tiveram uma briga há quase 50 anos, no México, que terminou em rompimento radical.

O efeito imediato foi um olho roxo do autor de “Cem anos de solidão” desferido pelo autor de “Conversa no Catedral”. Apesar de muitas especulações sobre a causa do desentendimento – que seria ional e teria envolvido a mulher de Llosa, Patricia, e uma amante sueca – os dois nunca deram detalhes publicamente do entrevero.


García Márquez foi padrinho de Gonzalo, o segundo filho de Llosa, que dedicou ao colombiano uma tese de doutorado – transformada em livro homônimo (editora Alfaguara) – sobre a obra dele na Universidad Complutense, de Madri, com o nome “García Márquez: história de um deicídio”, em 1971. Llosa analisa a obra de García Márquez, que irava muito. Após o incidente no México, entretanto, ele proibiu veementemente novas edições.


Há ainda outra grande sintonia entre ambos. É o livro “Duas solidões: Um diálogo sobre o romance na América Latina” (Editora Record), uma longa e recomendada conversa entre os dois escritores sobre literatura, em 1967. Mas tudo isso ruiu.


Dia fatídico


Era 12 de fevereiro de 1976, dia do lançamento do filme “Os sobreviventes dos Andes”, de René Cardona, no Palácio de Bellas Artes do México. “Quando eu o vi, parecia que estava sorrindo e que iria me abraçar. Foi por isso que, quando ele me deu o soco, eu fiquei completamente indefeso e de braços abertos. Se fosse o contrário eu teria pelo menos protegido a cara”, contou o colombiano em entrevista sobre o reencontro com o peruano no evento.


Amigo de longa data de García Márquez, o diplomata Plinio Apuleyo Mendoza também relatou o episódio: “Gabo avistou o amigo e foi em sua direção, com os braços abertos. 'Mario', disse, sorrindo. Vargas Llosa fechou o punho e disse: 'Isso é pelo que você fez com Patrícia', e o derrubou no chão”. Foi um murro de direita no olho esquerdo de Gabo.


Vargas Llosa cultivou fama de galanteador, mesmo quando era casado com Patricia. Durante uma viagem, conheceu uma sueca, por quem se apaixonou, e largou a esposa. Contam biógrafos, amigos e conhecidos que Patrícia, desolada, teria procurado García Márquez, e a mulher dele, Mercedes Barcha, que a teriam aconselhado a pedir o divórcio. Llosa, entretanto, voltou para casa e, supostamente, tocado por ciúme e insinuação de Patricia de que Gabo teria flertado com ela, partiu para a vingança no evento no México pela suspeita de traição.


Fotógrafo

O olho roxo do autor de “O amor nos tempos do cólera” e “Crônica de uma morte anunciada” foi fotografado por Rodrigo Moya, mas a imagem só foi revelada por ele em 2007, 31 anos depois. Na biografia “Solidão e companhia: a vida de Gabriel García Márquez contada por amigos, familiares e personagens de 'Cem anos de solidão'” (Editora Crítica), de 2014, a jornalista colombiana Silvana Paternostro dedica um capítulo, chamado “Nocaute”, ao famoso ataque de Llosa a Gabo.


Ela reproduz literalmente depoimentos de amigos e conhecidos do escritor colombiano sobre a agressão. É o caso do fotógrafo Rodrigo Moya, que conta: “Era 11 da manhã ou meio-dia e eu estava em minha casa em Colonia Nápoles. (…) Ouço uma batida na porta, e lá estão Gabo e Mercedes. Fiquei muito feliz e muito surpreso ao vê-lo. (…) Ele me disse: 'Quero que você tire fotos do meu olho roxo. (…) E perguntei a ele: 'O que aconteceu?' Ele fez uma piada, como: “Eu estava lutando boxe e perdi”. Quem explicou foi Mercedes. Ela contou que Vargas Llosa havia lhe havia dado um soco. 'E por que fez isso?' [Gabo respondeu:] 'Não sei. Fui ate ele com os braços abertos para cumprimentá-lo. Não víamos um ao outro fazia algum tempo.'” Moya conta também que o golpe foi tão forte que Gabo caiu e ficou sangrando, porque a lente dos seus óculos quebrou e feriu o nariz.


Em outro depoimento reproduzido na biografia, Moya dá outra versão para o soco: “Todo mundo vê uma questão sexual ou erótica, e isso pode não ter sido verdade. Mas os três são os únicos que sabem o que aconteceu. Mais do que uma disputa política, eles viveram uma separação.”


Moya completa o novo depoimento: “Vargas Llosa já havia se movido surpreendentemente para a direita. Acho que o choque deve ter sido porque ocorreu essa separação, e com certeza, também deve ter havido outras coisas que fizeram Vargas Llosa explodir. O soco foi violento, entendo de socos. Foi um de direita. Ele [García Márquez] estava na fileira da frente. Parece que ele chegou de lado e Vargas Llosa se levantou e bateu nele. Não sei de que ângulo, mas foi um soco forte.”

Mario Vargas Llosa com a sua segunda mulher, Patricia, que teria sido a causa do soco que ele deu em García Márquez
Mario Vargas Llosa com a sua segunda mulher, Patricia, que teria sido a causa do soco que ele deu em García Márquez AFP

Mulherengo


Outro depoimento na biografia escrita por Silvana Paternostro é o do também fotógrafo Guillermo Angulo: “Mario é um grande mulherengo e é um homem muito bonito. Então Mario, em uma viagem que fez de navio de Barcelona para El Callao, conheceu uma mulher linda. Eles se apaixonaram. Abandonou a esposa e foi embora com ela. E o casamento acabou e tudo mais. A esposa dele voltou para arrumar a casa e, claro, começou a encontrar os amigos. Então eles voltaram, e a esposa disse a Vargas Llosa: 'Não pense que não sou atraente. Amigos seus como Gabo estavam atrás de mim'. Um dia eles se encontraram em um teatro na Cidade do México, e Gabo foi em direção a ele de braços abertos. Llosa fechou o punho e disse: 'Isso é pelo que você tentou com minha esposa', e o derrubou no chão.'”

Angulo diz também que García Márquez teria dito: “Ela [Patrícia, mulher de Llosa] está dando em cima de mim, mas gosto muito do Mario, mesmo que estejam separados.


Ainda na biografia de Silvana Paternostro, Apuleyo explica: “Patricia [mulher de Llosa] está no navio com Mario quando ele se apaixona [por uma sueca]. Quando chegam ao Chile, Patricia tem de voltar para Barcelona e arrumar a casa. Gabo e Mercedes ficaram com ela o tempo todo. Eles eram muito próximos. Sei disso porque Gabo me contou. Quando Patricia precisa voltar para Santiago, Gabo a leva até o aeroporto, mas eles estão atrasados, e Gabo diz a ela, sem pensar: 'Se o avião decolar sem você, ótimo, faremos a festa'. Gabo é caribenho, e foi nesse espírito que ele disse isso, e ela entendeu mal”.


Em “Gabriel García Márquez: Uma vida” (Ediouro), de 2008 Gerald Martin, o biógrafo “oficial” em quem o escritor colombiano confiava, também especula sobre as causas do soco, mas com outra hipótese além da ional. Ele afirma: “Por trás do evidente sentimento de traição de Vargas Llosa, pode ter se ocultado uma ansiedade de que o pequeno colombiano pouco sedutor estivesse se saindo melhor do que a encomenda. O próprio sucesso literário, extraordinário e bem merecido, e a fina estampa de belos traços de Mario não eram suficientes em si mesmo – talvez a única arma que lhe restara fosse o soco poderoso.”


Martin vai mais longe com a especulação sobre uma suposta inveja de Llosa: “Não importa quão bem Mario escrevesse, nem importa quanta publcidade recebesse, era sobre García Márquez que os jornais e o público queriam saber; e, por mais justificado que Mario se sentisse em sua rejeição a Fidel Castro e Cuba, García Márquez parecia ter emergido sem marcas do restolho do caso Padilla [referência ao escritor e poeta cubano Heberto Padilla, acusado de “atividades subversivas” pelo regime cubano] e se tornara o incontestável campeão literário da esquerda latino-americana. Deve ter sido muito frustante.”


Especulações e muitas versões à parte, García Márquez e Vargas Llosa nunca mais se falaram. Outro amigo, Jaime Banfi, diz no depoimento a Silvana Paternostro: “Ele [Gabo] sempre foi muito leal, mas, ao mesmo tempo. Implacável ao romper relações com alguém. Há pessoas com quem rompeu e nunca mais falou. Obviamente, esse foi o caso de Vargas Llosa.”


Em abril de 2014, logo após a morte de García Márquez, Llosa afirmou em entrevista: “García Márquez e eu fizemos um pacto de que não incentivaríamos fofocas sobre nosso relacionamento. Então, ele morreu cumprindo o pacto, e eu vou morrer cumprindo o pacto.” E assim Llosa também cumpriu a promessa. Morreu mantendo o mistério no último domingo (13/4). Curiosamente, embora a narrativa tenha outro tema, o último livro de Llosa, lançado em 2021, foi dedicado a Patricia, mas poderia ser a García Márquez também, porque tem como título “Dedico a você meu silêncio”.

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