João Melo lança em BH livro sobre lutas e perdas na África
Poemas refletem os questionamentos do poeta angolano sobre perdas, imes, contradições e combates travados no continente africano
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Em um dos poemas de seu novo livro “Os sonhos nunca são velhos” (Inmensa Editorial, Coleção Infame Ruído, MG, 2024), que integra o projeto “Terceira feira: Encontro de literaturas das margens do mundo”, que acaba de publicar 25 títulos de autores brasileiros e da diáspora africana, o poeta angolano João Melo, em viés de espanto, indaga: “… para que serve a poesia/ quando a perplexidade tomou conta do mundo”. Eis a chave que permite abrir as portas de uma sensibilidade estética nesse conjunto que reúne o denso percurso de uma deontologia literária escrutinadora das mazelas e da história recente nesses tristes tempos em todos os trópicos, em que, para muitos, os sonhos e a utopia parecem refratários, condenados ao museu das ilusões.
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Em toda sua trajetória como jornalista, escritor e homem público (criador e diretor da revista África 21, colunista do Diário de Notícias de Lisboa, deputado por várias legislaturas e ministro das comunicações), João Melo conferiu ao exercício e à militância intelectual e política sua identidade, firmando-se num cenário conturbado com severos posicionamentos críticos na esteira de uma escrita de “intervenção clínica e corrosiva”, como assevera Anelito de Oliveira em seu prefácio.
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Na poesia, na ficção, no ensaio e na crítica literária, culminam posições reflexivas sobre as demandas, contradições e descaminhos do povo africano. Sua escritura se impõe questionadora e frontal não apenas diante desses dilemas e tensões locais, mas para afrontar “o cínico e secreto júbilo/ dos astutos e velhos senhores do mundo”, numa altura contaminada por distopias e atrofias, regida pelo cinismo, inverdades, tutela dos algoritmos, derrota da empatia e falência da humanidade, caldo em que se fermenta velozmente o imparável déficit civilizacional a que estamos sendo crucialmente empurrados.
Subjacente à responsabilidade estética, a arte de João Melo carrega o sentido ético de uma postulação literária que se inquieta com tudo o que está posto ou acontecendo não apenas na atávica política de Angola, mas em todos os cantos do mundo. Emerge de sua aguda observação sociológica o escritor desiludido que, mesmo crendo ser impossível escrever em meio à lixívia imposta pelo conservadorismo e as novas facetas de um capitalismo predatório, é capaz de reabilitar uma fugaz esperança ao, paradoxalmente, sinalizar: “contudo a poesia resiste e resistirá/ pois só ela é capaz de fazer germinar em silêncio/ dentro da acelerada degradação total/ os novos amanhãs que chegarão para regenerar os velhos amanhãs/ conspurcados e perdidos na contraditória voragem da História.”
Segmentado numa divisão ontológica (“Até que as minhas palavras comecem a fazer sentido”, “Onde foi que nós erramos?” e “O mundo não morrerá sem luta”), todo o conjunto traduz-se literalmente num “Relatório poético dos dias que vivemos” condensando uma memória dos ivos ancestrais que ainda perduram sob nova roupagem. Nele, Melo elenca o caos, encara os ladrões dos celeiros e fita os abismos quotidianos. Em acutilantes sentenças faz a arguição das impossibilidades reinantes num mundo que se desintegra pela força avassaladora dos acontecimentos, da ressurreição e servilismo promíscuo a ideias totalitárias, à pseudo e farisaica moral evangélica, a um feudalismo e a uma inquisição ressignificados pelas redes sociais, quando nesses territórios “velhos fascistas assumem novas caras” e “democratas imperiais”, com escárnio e impunidade, não se constrangem em deflagrar seu arsenal de ódios e ministrar, como torquemadas reciclados, sua “prodigiosa pedagogia do terror” para “ensinar-nos as virtudes da democracia” nesse milênio já gangrenado por confiscos, usurpações e tragédias.
No poema que empresta título ao livro, expondo sua técnica para ar e sobreviver a esses dias conturbados, conclui que o poema é sempre uma instância épica, mas enunciá-lo reafirma uma necessidade dialética e sendo a poesia elevada à condição de poderosa entidade, mais que um estado de espírito, é sua convicção feroz e radical : “Os meus próprios sonhos/ são velhos./ Tão velhos que não preciso de nomeá-los./ Mas todos os dias, em silêncio,/ insisto neles.”
A obra evoca epígonos da resistência num continente tão estigmatizado e agredido por regimes sangrentos e desastres climáticos e homenagear os mártires dos conflitos que se arrastam mundo afora, sobretudo no Oriente Médio e Ásia, quando na Palestina, Síria, Líbano e Ucrânia o horror está na ordem do dia. “Os sonhos nunca são velhos” consiste num inventário das lutas que o autor presenciou, seja como filho de um dos integrantes do movimento pela independência (a quem dedica “Pai, este é o último poema”) e que morreu tragicamente pouco tempo depois, sem viver os desdobramentos do processo de descolonização; seja como o jornalista, escritor e parlamentar que acompanhou os duros anos de uma história marcada por guerra civil, fomes e outras vicissitudes que espelham dolorosas experiências individuais e coletivas.
Nesse livro o autor adverte para a impossibilidade de estancar a luta, senão por uma consciência que enfrente os traumas e fraturas pós-coloniais, pois só ela se converte em legítimo vetor das mudanças; e rastreia, num viés de testamento-testemunho, uma época acossada por contendas, pesadelos e delitos abomináveis. Daí resulta um documento histórico, emocional e pungente que dá conta do imenso luto que sempre banhou a geografia dos povos oprimidos e aponta, diante da imprevisibilidade de um presente embebido em miséria e sangue: “só nós, os derrotados do ado,/ podemos reescrever os seus termos/ e edificar um novo futuro”, ressaltando que é pela poesia, essa luta a(r)mada da linguagem-lâmina, que “precisamos de continuar a conspirar”.
RONALDO CAGIANO é escritor, autor de livros como “Eles não moram mais aqui”, “Os rios de mim”, “O mundo sem explicação” e “Cartografia do abismo”.
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Lançamento na próxima terça-feira em BH
“Os sonhos nunca são velhos”, de João Melo, terá lançamento em Belo Horizonte na próxima terça-feira (06/05), às 18h, com o evento “Converas literárias Angola-Brasil”. No encontro na Livraria Quixote, o escritor angolano conversará com os professores e escritores Nazareth Fonseca e Rogério Barbosa. A mediação será de Maria José Amorim. A Livraria Quixote fica na Rua Fernandes Tourinho, 274, na Savassi, em Belo Horizonte.