PENSAR

O mundo inteiro cabe no silêncio de '(Um) ensaio sobre a cegueira'

Em análise da montagem do Grupo Galpão, Carlos Antônio Leite destaca "apelo quase desesperado" pela verdade e contundência entre elementos cênicos e realidade

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Carlos Antônio Leite Brandão

Especial para o EM

Tenho o costume de sempre andar com uma cadernetinha à mão para fazer anotações que me ajudam a “reparar” melhor algumas coisas que vejo, tal como li escrito no folheto que peguei ao entrar no Galpão Cine-Horto para assistir “(Um) ensaio sobre a cegueira”: “Se podes olhar, vê! Se podes ver, repara!”, que é a epígrafe do romance do escritor português. O mesmo folheto esclarece que o verbo “reparar” tem duplo sentido: ele significa tanto aprofundar o olhar e torná-lo mais ativo quanto consertar, refazer ou restaurar algo. Minha caderneta é só o meu modo particular e íntimo de por “reparo” nas coisas. “Quem não é visto não existe!” diz um dos personagens da peça, uma crítica evidente ao mundo atual, com suas selfies, seus engodos e suas proclamações altissonantes daquilo que é o mais banal, o mais vil e o mais desumano: à reboque do capital, uma panescopia obscena invadiu este mundo, ao menos o ocidental.


Não estou infenso a isto. Ninguém está. No meu caso, contudo, quero apenas conseguir ver a mim mesmo, o que se torna cada vez mais difícil em um ambiente midiático onde tudo tem de ser exposto, propalado, vendido, consumido e dejetado, sobretudo os seres humanos. Por isso, sigo com a minha cadernetinha, e cada vez mais íntimo, ou seja, tímido. Não estou sabendo viver de outra forma.


Se houvesse uma cortina a ser descerrada no início da peça, veríamos a plateia começar a ser espelhada pela encenação proposta, até que ela venha a se reconhecer no mesmo “mar branco leitoso” que os personagens dizem ser a única coisa que aram a ver, ao ficarem cegos.


Saramago proclamou a barbárie que nos assola cada vez mais e ligou o sinal vermelho de alerta, a última coisa vista por quem foi o primeiro a perder a visão: estamos todos cegos e aprisionados num manicômio, hospício ou presídio, ao menos neste hemisfério ocidental, e a montagem do Galpão traduz isto com veemência, clareza e sem concessão a qualquer divertimento. Ela é uma parábola sobre a atualidade, o que fez a minha imaginação ligar a cena das mulheres em fila sendo obrigadas a se prostituir à dos cegos caminhando sem rumo a um buraco, como na tela de Peter Bruegel: “A parábola dos cegos”, de 1568. Estamos indo para um buraco, leitor! Você vê?


Minha maneira preferida de entender as coisas é fazendo comparações, metáforas e analogias, mais do que por dedução ou indução. Segundo o Dicionário Houaiss, a parábola é uma narrativa alegórica, que transmite uma mensagem indireta, por meio de comparação e analogia. A remissão à pintura de Bruegel é importante para eu amarrar aqui no Galpão uma das minhas pontas e ensejar meu entendimento sobre a peça. A encenação deste “Ensaio” proporciona isto: na esteira do teatro proposto por Brecht, ela faz com que a plateia se mantenha sempre ciente de que aquilo que ela esta vendo é uma encenação – e não o fingimento de uma realidade que é levada ao palco – e não esconde seu caráter “pedagógico”, que costuma causar tantos arrepios naquele que vai ao teatro apenas para se divertir e fazer ar o seu tempo.


Não, leitor ou leitora, esta peça do Galpão – um grupo cujo trabalho é encarado como um rito, e de alto risco, como escrevi no título do livro redigido em comemoração aos seus 15 anos – é uma advertência, um apelo quase desesperado, um desvelamento da verdade na qual você também está embebido. Todos estamos. E, por isso, ela é uma obra de arte, uma arte cujo apelo é mais ético do que estético. Ela não é um mero espetáculo, mas uma “experiência”, uma maneira de fazer com que você saia do território onde leva sua vida comezinha, e veja-o, do lado de fora, o quão grotesco, apodrecido, fétido e cego ele está se tornando.

Desculpe se não douro as minhas palavras aqui, mas é preciso permanecer à altura da dureza, da crueza e da contundência desta mensagem, para que abramos os olhos e os sustemos abertos, como puxando para cima as nossas pálpebras superiores e mantendo-as erguidas, tal como as atrizes fazem ao cantarem com seus narizes puxados para cima, no início do espetáculo, como se imitassem focinhos de porco, ou para facilitar a entrada e saída do ar.


Para mim, não há ironia alguma na peça, nem mesmo no sarcástico Ladrão interpretado pelo Paulo André: ele é um morto-vivo, um morto-vivo, um morto-vivo, como eu vi na cena da sua morte, que o público viu mais como uma gag e deu risadas. Mortos-vivos somos cada um de nós, e a morte deste Ladrão me reportou ao contraste de luz/sombra e claro/escuro em Caravaggio, como na “Crucifixão de São Pedro” (1601), e Rembrandt, em “A lição de anatomia do Doutor Tulp” (1632). 

Tal jogo luminoso é violento, tenso e cru, o que é acirrado ainda mais pela trilha sonora da peça e pelas inserções dramáticas e precisas da sonoplastia providenciada pelos atores. Tudo está no lugar, tudo é preciso e trabalhado com a economia seca que suponho também ter sido a das encenações das tragédias de Ésquilo: viris, minerais e alheias a qualquer glamour.


Escrevendo sobre as peças em que trabalhei no Galpão, observei o papel da música nas montagens: ela interrompe o desenrolar horizontal da peça e a verticaliza, de modo a altear o lirismo e dar lugar ao movimento do páthos e do sentimento e comover a assistência, como registrei desde a primeira montagem que fizemos com Gabriel Vilella: “Romeu e Julieta”. Em “(Um) ensaio sobre a cegueira”, este aprofundamento e esta transcendência vertical dirigem-se para os infernos, e não para o céu, e são produzidos pelos vários momentos de silêncio profundo, taciturno e trágico que entrecorta as cenas e paralisa os atores e a plateia.

Isso condiz com a frase que é repetida diversas vezes, como durante a violação das mulheres: “Tudo cabe neste silêncio, na porra deste silêncio!”. Dentro deste silêncio, a desumanização é destilada e concentrada, e um espelho invisível é colocado em frente de nós mesmos, que estamos assentados na plateia e na expectativa de que algo venha a acontecer fora de nós, no palco, a fim de evitarmos de assistir àquilo que deveria estar ando no nosso palco interior, que não queremos ver. Mas é preciso tirar a venda dos olhos, para que possamos nos mirar, o que as bolhas e a neblina espessa não deixam.


Dentre as pontas que enlaço e anoto no meu caderninho, há uma que me é particularmente cara. O hospício, manicômio ou seja lá o que for o recinto onde os cegos foram aprisionados, coaduna-se com o mundo dos leprosos descrito por Italo Calvino no conto “O visconde partido ao Meio, que deu origem à montagem de “Partido”. As coisas pioraram de lá para cá, leitor e leitora. O “mar de leite” e o “mal branco” alastraram-se, o abismo aproximou-se e a vertigem tornou-se bem maior, o que exige mais contundência na fusão entre o teatro e o real, como faz esta montagem do Galpão.


A imaginação do público é convocada para ver como urina do Menino a água que o personagem de Antonio Edson derrama de uma garrafa ou as suas palmas mimetizando os 80 tiros que assam o Ladrão, o que me lembra imediatamente o texto de Clarice Lispector sobre o Mineirinho (1969), criminoso assassinado com 13 tiros. Lá, como cá, é impossível que um destes tiros reproduzidos pela palma do ator não ribombe dentro do peito de cada um dos espectadores, mesmo que ele seja partidário do lema que vige em grande parte das pessoas atuais que se dizem civilizadas: “bandido bom é bandido morto.” Morto-vivo somos todos nós, repito. E ressoa em mim a advertência repetida durante a peça: “não vai ficar tudo bem, não!”, meu caro leitor ou leitora, se não abrirmos os olhos para aquilo que se a ao nosso redor e dentro da gente, desumanizados que estamos pelo capital e pela estupidez generalizada.


Achar que vai ficar tudo bem é uma espécie de cinismo e cegueira diante do que está acontecendo ao nosso lado, não? Nem a morte iminente do planeta e da nossa espécie causa um mínimo de estupor e espanto. Quando vermos, será tarde, se quisermos ver e reconhecer isto. Eis o ser humano degradado, convertido em animal, cego, sem comida, nu sobre as suas próprias fezes e compelido pelo militar que dirige o recinto macabro concebido por Saramago. A fome avilta, leitor ou leitora. Ninguém é totalmente vil por sua própria natureza, eu acho. E é clara a analogia entre tal ambiente de cegos e as bolhas de fake news e ordens midiáticas que nos convertem em rebanhos dóceis e temerosos de rebelar-nos, de romper o silêncio e de sairmos delas, tal como ao final os cegos relutam em sair de onde estavam, mesmo que o portão esteja aberto e não haja mais vigias.


Acostumados ao nevoeiro e ao mar branco e leitoso, como pus, tememos sair destas bolhas e voltar a enxergar o que está diante de nós. Se tivéssemos consciência de estarmos chegando ao limite mais bestial do homo sapiens-demens e ao fim do mundo, talvez aprendêssemos a ver as coisas, como se as víssemos pela última vez, ainda que tardiamente, e disséssemos uns para os outros aquilo que repetem os cegos que se abraçam, mesmo emporcalhados: “Eu estou aqui, ainda!”. Isso faria bem àqueles que nos sucederão sobre a Terra, e nossos descendentes agradeceriam por ter-lhes deixado o mundo e o humano como heranças, tal como nós o recebemos dos nossos anteados, e poderiam estar por aqui, também.


Entre a realidade entrevista e a encenação que acompanho, vou anotando as coisas, emendando as minhas pontas e pondo reparo nelas, como entre aquilo está sendo encenado, a stultifera navis estudada por Michel Foucault em “História da Loucura”, “A extração da pedra da loucura” (entre 1475 e 1480) e “A nau dos loucos”, telas pintadas por Hieronymus Bosch (entre 1490 e 1500). Estamos no mesmo barco, leitor e leitora, na mesma nau dos loucos, e não há salvação individual.

Ou nos salvamos todos ou ninguém se salvará, como numa peste mundial e definitiva. Tal como os cegos avaliam ao final da peça, eles já estavam cegos desde muitos anos antes que o “mar de leite” tomasse conta dos seus olhos, dos seus pensamentos, dos seus sentimentos e das suas ações e decisões. Depois da violação, uma das mulheres estupradas é lavada pelas demais, com compaixão e solidariedade. Elas mimetizam a lavagem também da sujeira e da barbárie que nos assola e a nossa desumanização: “é mais divertido matar os seres humanos na realidade do que em videogame”, avalia o sargento interpretado por Simone Ordones.


Assistir a “(Um) Ensaio sobre a cegueira” e não se “co-mover” – ou seja, escapar da bolha onde estamos, fazer uma “experiência”, ainda que inicialmente teatral, vislumbrar o estado em que nos encontramos neste hemisfério e agir juntos – é sintoma de que nós também estamos cegos há bastante tempo. Fomos cegados, e bem desconfiamos pelo que e por quem. A lei do rebanho é a lei destes cegos, como era a dos leprosos em “Partido”.


Ao final da peça, os portões se abrem para que os atores e o público saiam da bolha do Galpão Cine Horto para a rua. Ponho a minha caderneta no bolso, com as anotações que fiz para por reparo em mim, no mundo e na pseudo-humanidade que me rodeia. Amanheci, abri os olhos e fui para o computador, a fim de relatar para você esta “experiência” que tive e voltar a advertir: é preciso abrirmos os olhos, leitor, eu e você! E mover-nos para fora deste lugar que estamos, para mudá-lo e não apodrecer junto com ele. Não há outro lugar, e eu e você ainda estamos aqui! Por enquanto, ainda visíveis e capazes de trazer o nosso destino de volta para as nossas mãos.

CARLOS ANTÔNIO LEITE BRANDÃO é professor titular da Escola de Arquitetura da UFMG, pesquisador do CNPq e escritor


Autores já encenados pelo Grupo Galpão

Brecht (“Um homem é um homem”, “Cabaré Coragem”)

Calvino (“Partido”, adaptação de “O visconde partido ao meio”)

Gógol (“O inspetor geral”)

Luis Alberto de Abreu (“Till, a saga de um herói torto”)

Moliére (“Um Moliére imaginário”)

Nelson Rodrigues (“Album de família”)

Pirandello (“Os gigantes da montanha”)

Shakespeare (“Romeu e Julieta”)

Tchékhov (“Eclipse” e “Tio Vânia – e aos que vierem depois de nós”)

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