Saramago e a busca por um sentido de comunidade
Um dos fundadores do Galpão, Eduardo Moreira conta como português se tornou um farol para o grupo na montagem de "(Um) ensaio sobre a cegueira")
compartilhe
Siga noEduardo Moreira
Especial para o EM
“Se continuarmos juntos talvez consigamos sobreviver, se nos separarmos seremos engolidos pela massa e destroçados”
José Saramago
A minha geração, que vai pela faixa dos sessenta e poucos, e é, também, a geração da maioria dos atores que, há mais de trinta anos, compõe o núcleo do grupo Galpão, viveu sob forte influência da obra do escritor português José Saramago. O lançamento de seus livros era ansiosamente aguardado, desde que obras como “Jangada de pedra”, “Levantado do chão” e “O ano da morte de Ricardo Reis” chegaram ao Brasil, divulgando aquele que, hoje, é um dos mais importantes autores de língua portuguesa de todos os tempos.
Depois do estouro do polêmico e provocativo “O evangelho segundo Jesus Cristo”, em 1991, Saramago tornou-se uma espécie de artigo literário de primeira necessidade. Em 1995, ele lança “Ensaio sobre a cegueira”, que vai compor, junto com “A caverna” (2000) e “Ensaio sobre a lucidez” (2004), um vigoroso e devastador da distopia que atinge a humanidade e será em muitos aspectos uma premonição do percurso apontado para nossos tempos de século 21, marcados pela progressiva cegueira e pelo avanço da ameaça totalitária.
Em 1998, Saramago vai, finalmente, receber o primeiro prêmio Nobel de Literatura por um autor de língua portuguesa, consagrando uma obra que sempre primou por um pensamento insubordinado e pela exaltação da dignidade humana como ponto de referência frente à violência, à alienação e à manipulação.
Leia Mais
A fase distópica da obra saramaguiana coincide e tenta dar uma resposta ao forte avanço da mentalidade tecnocrática no mundo, com a consolidação do neoliberalismoe seu modelo que privilegia o comportamento individualista e de natureza narcisista. A competitividade neoliberal se impõe, sufocando qualquer possibilidade de solidariedade e de organização social. Os direitos sociais ficam cada vez mais s com a radicalização da violência e a culpabilização do desvalidopor sua própria miséria.
Autor engajado, que nunca se furtou de sua função crítica de um homem radicalmente envolvido no pulsar de seu tempo, Saramago traça, nessas três obras, e, particularmente, em “Ensaio sobre a cegueira”, a alegoria de um mundo cada vez mais sufocado pela desumanização e subjugado pela barbárie.
Intelectual humanista, Saramago sempre se colocou na linha de frente de uma postura de comprometimento ético de sua literatura, comungando a fé de que a razão, através da interrogação e do julgamento como instrumentos críticos, seria capaz de reverter o fluxo da barbárie e do autoritarismo.
O que despontava nos anos 80 e 90 do século ado consolidou-se, definitivamente, com a disseminação das redes sociais e a tendência do “cada um por si”, num modelo de individualismo narcisista, e com o absoluto desprezo por todo e qualquer ideal de bem comum. A ideia de uma via comunitária, que pense, coletivamente, alternativas e soluções, vem sendo cada vez mais solapada pela manipulação dos algoritmos e pela disseminação de “fake news” e discursos de ódio, que desprezam e sufocam qualquer possibilidade de saída pautada na discussão democrática e no interesse da comunidade.
A figura do escritor e intelectual que advoga a possibilidade da razão e de seus argumentos servirem como poder capaz de ver e reparar o mundo parece desmoronar cada vez mais intensamente, e a trilogia distópica de Saramago aponta para uma trágica premonição desses tempos sombrios, dominados pela ascensão de uma extrema direita destrutiva e dos ataques virulentos a toda e qualquer intervenção de razão universalista.
Saramago nos deixa em 2010, e, de lá para cá, as perspectivas de um mundo iluminado/reparado pelo bom senso tornam-se mais e mais remotas. As democracias parecem começar a ruir por dentro, com a ascensão manipuladora de autocracias e déspotas, sempre dispostos a se mascarar na pele de cordeiro da “liberdade de expressão”.
O inferno fictício criado por Saramago parece progressivamente se concretizar em nossa realidade. Presentificamos, cada vez mais, a alegoria dos “cegos que, vendo, não veem”. Seres que, por ignorância e medo, fecham-se para o outro. Constituídos em nichos, aglutinados por bolhas,agregados em redes sociais, esses grupos anulam e animalizam o outro, num movimento que nos empurra, progressivamente, na direção do obscurantismo autocrático. A alegoria da cegueira branca fecha seu cerco sobre nossos tempos.
No decorrer dos trinta anos que se aram desde o lançamento do romance, a cegueira como metáfora de nosso tempo torna-se, cada vez mais, um pesadelo real. A pandemia nos atravessa de forma avassaladora e cortante. O único antídoto capaz de conter essa marcha insensata, apontado claramente pelo autor, seria a solidariedade. É a constituição de um grupo de pessoas, que se aglutina em torno da Mulher que vê e do médico, formando uma microcomunidade em meio ao caos, que permite com que eles sobrevivam e estabeleçam um pacto pela continuidade.
É esse o substrato fundamental de “Ensaio sobre a cegueira”, que também serviu de guia para nossa montagem, escrita e dirigida por Rodrigo Portella. A constituição de um vínculo coletivo, que funciona com força centrípeta, capaz de fazer frente ao caos e à barbárie, e permite que, no romance, de certa maneira, a humanidade perdure, é a mesma e única capaz de estabelecer um freio à ferocidade do lucro desmedido, da desigualdade incontornável, do consumismo desenfreado e da destruição dos recursos naturais dos dias de hoje, levando-nos, inexoravelmente, à destruição do planeta.
Por se tratar de uma obra-prima que nos permitiria trazer à tona e discutir com o público esses temas fundamentais, a proposta de adaptação de “Ensaio sobre a cegueira”, trazida por Rodrigo Portella, ganhou, imediatamente, a adesão integral de todos os atores que estavam dispostos a participar do projeto. Contudo, mais do que isso, acho que o sentido primordial da fábula criada por Saramago também vai ao encontro da gênese e do sentido mais profundo de existência do próprio grupo Galpão. Um grupo de atores que, em seus mais de 43 anos de existência, sempre primou por ser um teatro de grupo, um coletivo de criação, cujo resultado está sempre voltado ao público e à comunidade em que está inserido, num trabalho que reflete, permanentemente, sobre as grandes questões de nosso tempo.
Ao longo de todas essas décadas, Saramago e sua obra sempre foram um farol, não só por seus temas, mas, também e sobretudo, pela dimensão ética de sua literatura e de sua ação como intelectual. Essa iração finalmente se concretiza, na montagem desse “(Um) Ensaio sobre a cegueira”, com direção de Rodrigo Portella.