Livro revela experiências de um autista diagnosticado na vida adulta
'Manual do Infinito: Relatos de um Autista Adulto' reúne vivências de Henrique Vitorino, que descobriu estar no espectro autista perto dos 30 anos
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Siga noO multiartista Henrique Vitorino, hoje com 33 anos, sempre conviveu com um excesso de autocobrança e sentimentos de culpa por dificuldades recorrentes em interações sociais. Durante boa parte da vida, não compreendia por que certas situações pareciam mais desafiadoras para ele do que para outras pessoas. Foi apenas em junho de 2021, durante a pandemia da COVID-19, que recebeu o diagnóstico de transtorno do espectro autista (TEA), já próximo dos 30 anos.
O que inicialmente gerou angústia e apreensão, logo se transformou em um alívio: características de sua personalidade, até então consideradas “peculiaridades”, começaram a fazer sentido.
O TEA é uma condição neurológica atípica que ainda não tem causas totalmente conhecidas. Entre os principais traços do espectro estão:
- Hipersensibilidade sensorial (excesso de estímulos nos sentidos)
- Dificuldades de interação social
- Pensamento rígido (resistência a mudanças e alterações na rotina)
Hoje, o autismo é classificado por níveis de e, que indicam o grau de acompanhamento necessário para o desenvolvimento e bem-estar da pessoa autista. Com o avanço dos métodos diagnósticos, cresce o número de crianças que recebem o diagnóstico precoce - fator decisivo para o o a estímulos e tratamentos adequados.
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O diagnóstico de Henrique chegou em 18 de junho, data em que se celebra o Dia do Orgulho Autista. Para ele, a coincidência marcou um “segundo nascimento”. Motivado a entender melhor sua condição, mergulhou em pesquisas, encontrou outros autistas nas redes sociais e se reconheceu em seus relatos. Foi então que decidiu escrever sobre sua própria trajetória. “Meus pensamentos são completamente autistas. Todas as minhas emoções também. [...] Sou autista nos meus mínimos detalhes”, afirma.
Publicado pela editora Nova Alexandria, “Manual do Infinito: Relatos de um Autista Adulto” reúne 43 textos que abordam diferentes temas do espectro autista a partir de uma perspectiva pessoal e ível. O livro também traz o “Dicionário da Pessoa Autista” — um anexo com explicações de termos como capacitismo*, hiperfoco, masking e autismo não-verbal. Em um dos capítulos, “Que QIsso?: níveis de e e níveis de capacitismo”, Henrique propõe a “Abordagem Espectral do Autismo”, um modelo que busca ampliar os parâmetros diagnósticos para adultos.
Escrito durante o período de isolamento social, o livro mescla informações técnicas com um tom íntimo e confessional, convidando o leitor a enxergar o mundo sob a ótica da neurodiversidade. A obra também inspirou o autor a iniciar uma série de palestras e encontros sobre autismo na vida adulta.
“Com o lançamento do 'Manual do Infinito', desejo que mais pessoas autistas contribuam com a cultura de inclusão das pessoas com deficiência (PCDs) na sociedade”, afirma Henrique.
Confira bate-papo com Henrique Vitorino sobre seu diagnóstico:
O diagnóstico de autismo mudou sua forma de se perceber?
Nasci em Santo André e, desde cedo, meus pais notavam que eu era diferente das outras crianças. Comecei a ler e escrever com um ano e oito meses, mas minha socialização na escola era bem limitada. Meu desenvolvimento intelectual era precoce, mas o social, não.
Também sempre fui muito sensível a estímulos, luz, som, cheiro, toque, gosto. Lia muito, e isso criava um abismo entre mim e os professores, especialmente nas escolas públicas. Minhas notas eram altas, mas fazer amigos era raro. Sofri bullying de colegas e até de professores.
Você considera que os professores foram opressivos com você?
Tive de tudo na escola. Mas aprendi a valorizar os momentos bons. Na adolescência, minha disfunção de fala, parecida com um tipo de gagueira, se agravou e quase perdi a fluência verbal. Foi minha professora de português que me incentivou a escrever. Comecei com poemas aos 13 anos. Quando descobri a poesia clássica, percebi que as palavras tinham ritmo. Isso me levou às artes.
Mais tarde, ei a escrever em um blog. Mas o perfeccionismo me impedia de levar minha escrita a sério. Aos 15 anos, minha mãe me deu um violão, e comecei a me interessar também pela música.
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Como começou sua vida profissional?
Em 2013, comecei a dar aulas de informática básica para idosos em um centro público. Foram eles que primeiro me acolheram. Senti que as pessoas mais velhas me entendiam mais. Trabalhei lá até 2016, organizando saraus e eventos culturais. Com o tempo, surgiu o desejo de viver da arte.
Em 2017, tomei a decisão: “Vou ser artista profissional, não importa quanto tempo leve”. Com apoio da minha família, comecei a dar aulas de violão e participei do coral cênico Amídalas Cantantes, do Tato Fischer. Em 2018, me tornei instrutor de música no Clube dos Aposentados Casa Branca, onde dou aulas até hoje.
Como era a vida antes do diagnóstico?
Difícil. Havia um abismo entre o que eu conhecia intelectualmente e o que conseguia executar no dia a dia. Isso me impediu de manter empregos formais. Se eu tivesse sido diagnosticado ainda criança, tudo teria sido diferente: teria recebido apoio pedagógico, proteção contra a violência escolar, o a terapias.
O diagnóstico foi libertador?
No início, foi uma crise existencial. Pensei em tudo que teria sido diferente se eu soubesse antes. Mas hoje vejo que minhas experiências me formaram. Aprendi a transformar dor em força. Sempre gostei de falar em público, mas temia interações pessoais. O telefone fixo, por exemplo, me deixava apavorado — pelo som, pelo constrangimento de tentar falar. Achava que tinha “manias”, sem saber que eram sintomas do espectro.
Esses traços, pensamento rígido, sensibilidade sensorial e dificuldade social — são os pilares do diagnóstico de autismo. Só entendi isso ao consultar um especialista. Antes, me via apenas como alguém "diferente". Ouvi muito que era preguiçoso. A verdade é que tenho limitações físicas por causa da falta de tônus muscular comum em alguns autistas.
Como você chegou ao diagnóstico?
Durante a pandemia, minha rotina foi afetada. Morava sozinho e percebi que minhas habilidades sociais estavam regredindo. Cheguei a ter medo até das aulas online de teatro. Fiquei ansioso, isolado, sem conseguir sair de casa. Minha mãe também investigava o tema e decidimos procurar um especialista.
Tive medo do diagnóstico. Achava que receber esse rótulo me limitaria. Mas, após conversas e exames, fui diagnosticado com autismo nível 1 de e. A primeira coisa que fiz foi procurar outras pessoas como eu. Encontrei autistas que falavam de suas vidas nas redes sociais com coragem. Pensei: “E se eu escrevesse sobre mim?”
Esse foi o primeiro momento em que percebi que poderia ser um escritor. Até então, meus escritos ficariam nas redes sociais e nunca os tinha imaginado em um livro “de verdade”. O que motivava a minha escrita era mostrar o meu jeito de ser no mundo. A produção do livro demorou dois anos e um mês, escrevendo de domingo a domingo.