Na escuridão da quinta-feira Santa, quando o céu de Ouro Preto se veste de luto, uma fila de chamas dançantes rasga a noite. São centenas de tochas, carregadas por figuras encapuzadas, cujos rostos se escondem sob capuzes pretos. A cena, que evoca mistério e devoção, é a Procissão do Fogaréu — um ritual ancestral que transforma as ruas de paralelepípedos em um palco de dor, esperança e memória. 

Em um Brasil Colônia ávido por símbolos de fé, os irmãos franciscanos recriaram uma prática ibérica medieval: retratar o momento da prisão de Jesus Cristo, que se encontrava em agonia, no Jardim das Oliveiras, após a Santa Ceia. A tradição nasceu em Minas Gerais no século 18, pelas mãos da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência. Essa celebração luminosa deixou de acontecer por 100 anos e, com louvor e lágrimas, retornou em 2019 na cidade de Ouro Preto. 

Noite de silêncio e fogo

Momento de emoção quando a imagem de Cristo segue a caminho da Igreja de N. S. das Dores

Patrick Araújo/UFOP

  

Às 22h, o sino da Igreja de São Francisco toca três vezes. As luzes da cidade se apagam, e o cortejo avança em silêncio, quebrado apenas pelo estalar das matracas e o eco de um tambor solitário. Os "farricocos" — nome dado aos encapuzados — carregam nas mãos o fogo que, paradoxalmente, representa tanto a traição de Judas quanto a busca pela redenção. Os capuzes, longe de qualquer associação moderna, remetem aos hábitos penitenciais europeus do século 16, onde o anonimato simbolizava igualdade perante Deus. 

Pelos becos coloniais, sombras se projetam nas igrejas barrocas. O contraste é forte: a escuridão dos capuzes contra o brilho das fachadas, a leveza da fé contra o peso da culpa. No auge, um momento de arrepiar: as tochas se apagam de repente, mergulhando a cidade em trevas absolutas. É o instante que simboliza o abandono de Jesus por seus discípulos. 

Procissão do Fogaréu resgata tradição que teve início no século 18 Patrick de Oliveira - PMOP
Com túnicas e capuz, o grupo, que sairá da Igreja São Francisco de Assis, vai carregar tochas durante toda a procissão Patrick Araújo/UFOP
Momento de emoção quando a imagem de Cristo segue a caminho da Igreja de N. S. das Dores Patrick Araújo/UFOP
Procissão luminosa retrata a prisão de Jesus Cristo após a Última Ceia Patrick Araújo/EM
Marco nas celebrações em Ouro Preto, Procissão do Fogaréu emociona ainda mais na semana santa Patrick de Oliveira - PMOP

O Fogaréu não é só uma procissão; é um espelho. Mostra que a humanidade, mesmo nas suas noites mais escuras, nunca para de buscar luz. Em Ouro Preto, onde o ado nunca está morto, as tochas seguem acesas — iluminando pedras, histórias e corações.  

Tapetes em vários tons colorem as ruas de Ouro Preto

Na quinta-feira Santa (17/4), enquanto o fogo tremular mais uma vez, a cidade vai ensinar que, às vezes, é preciso mergulhar na sombra para encontrar a própria claridade

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