
“Estamos todos parados no tempo imóvel”, constata um dos personagens de “Beatriz e o poeta”, o mais recente livro de Cristovão Tezza. O ano é 2020, o país é o Brasil e a cidade, Curitiba, onde “até a esquerda é de direita, mas tudo funciona muito melhor”. Há “um fantasma mortal do vírus” pairando no ar que respiram a tradutora Beatriz, presente em romances anteriores de Tezza, e Gabriel, jovem que a conheceu ainda adolescente. Entre os dois, um flerte, duas máscaras, algumas recordações e muitas reflexões sobre o estado das coisas no momento em que sair de casa ainda era “o movimento tático de uma batalha.”
Às voltas com um “surto agudo de irrealidade” enquanto traduz as ideias de um filósofo catalão, Beatriz tem medo e raiva. E suas reações ao momento de um país “intensamente ignorante, que montou sua máquina econômica sobre a escravidão e a prática da estupidez”, rendem agens especialmente marcantes de um dos momentos mais fortes da obra de Tezza. Ao completar 70 anos, o autor de mais de 20 livros, entre eles os premiados “Breve espaço entre cor e sombra”, “O fotógrafo” e “O filho eterno” (ainda seu maior best-seller), não alivia. Sem citar nomes, mostra que a literatura também tem armas poderosas para enfrentar “o pátio de pesadelos diários” de um governo que age “num crescendo de estupidez iletrada” e é (de)formado por “figuras borradas e escarmentas com a linguagem inteira estropiada cuspida aos pedaços, o escroto escatológico como expressão de Estado”.
Mas “Beatriz e o poeta” vai muito além do diagnóstico da patologia reinante. Por meio da alternância de vozes narrativas, Tezza contrasta a acomodação de Beatriz, “em estado de lockdown pessoal” e que só quer “uma vida neutra e estável”, com o ímpeto de Gabriel, visto inicialmente pela tradutora como “uma figura matutina, invasiva, estranha, engraçada, intrigante”. Enquanto tenta encontrar seu lugar no mundo e superar o relacionamento conflituoso com o pai, o jovem comete elegias amorosas assumidamente inspiradas em “A arte de amar”, de Ovídio, e entregues à tradutora por baixo da porta “como uma oferenda”. “Sou um poeta covarde, então transferi para o meu personagem a responsabilidade dos versos”, conta Tezza em entrevista ao Estado de Minas.
Para a primeira saída de casa depois de dois meses de reclusão, Beatriz escolhe a máscara como se fosse peça de roupa (“a preta é mais classuda”); afinal, “as orelhas viraram cabides”. Ela vai a um café e, munida de laptop, avança na tradução de “A fantasia identitária”, do filósofo Filip Xaveste. É com o catalão que a tradutora tem discussões sobre o empobrecimento da linguagem, o reducionismo na ficção literária, a relação entre poder político e perversidade, o predomínio da relativização dos fatos (“agora as coisas são o que dizemos o que elas são”).
Entre lembranças e especulações, “fios soltos” de sexo, amor, paixão invadem a mente de Beatriz e se amalgamam enquanto ela se aproxima, ainda que de forma lenta e hesitante, de Gabriel. Ao final, mesmo sob o signo do desamparo e da “vertigem do horror”, o autor deixa a porta aberta para que, enfim, prevaleça a sinceridade emocional.
A seguir, uma entrevista com Cristovão Tezza, incluindo perguntas formuladas a partir de agens de “Beatriz e o poeta”.
Qual o ponto de partida de “Beatriz e o poeta”? Por que retomar uma personagem que está em romances anteriores?
A personagem Beatriz se tornou minha coringa literária, alguém que me ajuda a pensar temas contemporâneos. Ela nasceu da minha inveja dos autores policiais clássicos, que em todos os livros contam com um detetive fixo e seu ambiente, deixando-os livres para a criação da trama, porque o personagem central já está pronto. Também me atrai a ideia de figuras que atravessam vários livros, como em Balzac ou Faulkner. Eu acho fascinante a imagem de que a literatura faz concorrência ao registro civil, criando novas pessoas a partir de um simples nome. Beatriz vem sendo uma presença forte na minha vida.
O que mais o interessava ao estabelecer a relação entre a tradutora e o jovem poeta?
Nunca há uma única razão para se escrever um livro. A pandemia é um tema forte, mas não em abstrato. Colocar pessoas “reais” vivendo o trauma do isolamento é um modo de investigar suas consequências, ainda mais no igualmente traumático momento político brasileiro, talvez o mais estúpido, perigoso e violento de que tenho lembrança. Mas há, prosaicamente, também um motivo literário: os poemas de Gabriel. Num dos meus surtos de poeta, escrevi uma série de elegias amorosas inspiradas em “A arte de amar”, de Ovídio. Como sou um poeta covarde, transferi para o meu personagem a responsabilidade dos versos. A paixão de Gabriel por Beatriz foi um casamento perfeito para mim, porque me permitiu também pensar sobre a cultura dos afetos contemporâneos. Penso no livro “Trapo”, que escrevi há 40 anos, também sobre um jovem poeta apaixonado: é um mundo completamente diferente.
“Beatriz e o poeta” é um dos primeiros romances nacionais ambientados na pandemia. O que foi mais difícil na reconstituição da realidade pelo filtro da imaginação">(foto: Andre Tezza Consentino/divulgacao)
Alguns aforismosTrechos de “Beatriz e o poeta” 4v2a1r
Desamparo
“Tudo está em desamparo como nunca esteve antes. Desamparo é a palavra do ano.”
Infância
“Toda infância é mesmo idílica, um sonho esgarçado, faltando pedaços de toda parte, memórias em fragmentos, emoções intensas e desesperadas e satisfeitas e impetuosas de alminhas em formação desesperadamente em busca de prazer e de sentido (...).”
Tempo
“O tempo não tem versão; uma segunda-feira é sempre uma segunda-feira.”
Jornalismo
“Nesse país grotesco, o jornalismo é uma das poucas profissões realmente essenciais à sobrevivência mental: é um trabalho que abre o mundo para você.”
Imbecilidade
“A mamata da inteligência acabou. Entramos na Era do Imbecil. E ele está armado.”
Logaritmos humanos
“Pessoas são logaritmos públicos; não há mais limite entre elas.”
Vulgaridade
“A vulgaridade é um éthos já dominante, universal e avassalador (...). A vulgaridade tornou-se um valor positivo, uma argamassa coletiva, a consolidação de um rompimento da película pela solidão dos afetos.”
Ressentimento
“O ressentimento é outra vertente do azedume, uma corrosão diferente, pior, porque se ampara em razões – não tem a pureza espontânea e cristalina da inveja, que brota do nada; o ressentimento reclama das pessoas; a inveja, de Deus.”
Silêncio
“Fuja das redes sociais. A verdadeira revolução se faz pelo silêncio e pela ausência. Ninguém aguenta mais tanta presença e tanto barulho.”
Desejo
“O desejo é a defesa protetora do corpo.”
Nitidez
“A literatura deixa tudo nítido. E isso que é maravilhoso nela. Mesmo o maior caos fica visível e controlado quando escrito.”
Depoimento/Rogério Pereira* u5b47
“Tezza se reinventa com scrita áspera e incômoda” 69343b
“Artífice da narrativa, Cristovão Tezza é um autor comprometido com a excelência do fazer literário, dono de um discurso elegante e certeiro. Nos livros mais recentes, nota-se explicitamente que ele também é um autor inquieto. Abandonou uma forma, digamos, mais tradicional para reinventar a sua escrita: com frases mais longas, diálogos intercalados (sempre em itálico), Tezza não só renovou sua literatura como também ampliou o seu olhar de Curitiba (um de seus principais personagens) para o Brasil. Um exemplo disso é ‘Beatriz e o poeta’, no qual questões que muito angustiam o país estão no centro da narrativa: a pandemia e a política nacional. Levando em consideração a animosidade latente no Brasil, a escrita de Tezza também se torna áspera, incômoda, como a sustentar que a literatura é sua arma (e não um revólver) para discutir/combater a desumanidade ao redor.”
* Rogério Pereira é jornalista, escritor e editor do jornal literário Rascunho