
O gosto não é dom, é treinamento
A análise sensorial, como descrevem as normas técnicas, exige controle, repetição, neutralidade, padronização
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O gosto não é um dom. Não nasce pronto, não se revela de forma espontânea. Como sugere Nicola Perullo, filósofo italiano dedicado ao gosto alimentar, ele se constrói — e mais que isso, precisa ser exercitado, treinado. É uma tarefa. Um trabalho contínuo de atenção, escuta, memória e presença. Não é apenas sobre identificar o doce, o ácido, o amargo ou o salgado. É sobre perceber como essas sensações se articulam, como se escondem ou se revelam umas nas outras, como se transformam com o tempo, com o contexto, com o corpo.
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Foi exatamente essa ideia que me guiou nas oficinas de treinamento sensorial do projeto “Educação do Gosto” vinculado ao Núcleo de Extensão da Faculdade de Gastronomia do Senac BH, realizadas em escola de ensino fundamental da rede pública. Em cada uma das atividades — desde tocar alimentos sem ver, até experimentar líquidos coloridos que confundiam o paladar — tornava-se evidente para todos que o gosto precisa ser treinado. As crianças descobriam, muitas vezes pela primeira vez, que a percepção sensorial não mora apenas na língua, mas também nos olhos, no nariz, nas mãos, no som de um alimento sendo mastigado.
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Um dos momentos mais aguardados em oficinas de treinamento sensorial é o de aprender sobre o umami. Diferentemente dos outros gostos básicos — doce, salgado, ácido e amargo —, o umami quase nunca vem com uma clareza de sua percepção. Ele aparece como sensação conhecida, mas pouco elaborada. Alguns costumam dizer: “tem gosto de miojo cru”, outros “parece carne, mas não é”. E assim, aos poucos, vamos descobrindo que todos sentimos o estímulo, mas nem sempre sabemos reconhecê-lo ou descrevê-lo. Falta vocabulário, falta contexto, falta treino. O umami ensina isso: que o gosto não é só instinto, é construção. Um aprendizado feito de escuta, comparação, memória. Uma tarefa que exige tempo — e atenção.
Treinar o gosto, nesses encontros, não era sobre julgar ou ranquear alimentos melhores ou piores, pelo contrário, era sobre habilitar os alunos a reconhecer características, sobre escutar o próprio corpo, prestar atenção nas sensações, construir vocabulário, dividir impressões. Era comum ver um aluno buscando palavras para descrever um aroma, outro hesitando entre duas características gustativas, um terceiro questionando se aquilo que sentia estava certo. E estava — porque sentir, ali, era a única exigência.
A análise sensorial, como descrevem as normas técnicas, exige controle, repetição, neutralidade, padronização. Mas, nesse espaço de troca com as crianças, ela também se revelou um exercício de autonomia. Uma iniciação sensível ao fato de que o gosto se transforma, se educa, se afina — como os sentidos, como a escuta, como o olhar. E que, portanto, precisa ser cuidado.
Ao final de cada oficina, voltava para casa com a sensação de ter testemunhado algo valioso: a formação de um paladar que não se reduz a preferências individuais ou a classificações fixas. Um gosto em movimento. E esse movimento, mais do que técnica ou conhecimento acumulado, é a própria tarefa — como nos lembra Perullo — de tornar o mundo comestível de forma mais consciente, mais justa, mais aberta à experiência.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.