
Por que dizer que alguém tem 'paladar infantil' soa quase como uma ofensa?
Nossos julgamentos geralmente partem da nossa bolha – nosso espaço, nosso tempo, nossa posição social, nossos significados
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Quem nunca ouviu – ou disse – que alguém tem “paladar infantil”? Essa ideia, vira e mexe, aparece por aí. Quase como uma sentença pejorativa. Um julgamento. Mas o que realmente significa ter um “paladar infantil”?
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Durante meu mestrado na Università di Bologna, realizei um estágio em um projeto do Slow Food, onde lecionei em oficinas de educação do gosto na Itália, acompanhando e conduzindo atividades voltadas ao desenvolvimento da percepção sensorial e da relação com os alimentos. Quando entrei, as oficinas já aconteciam.
Na primeira que lecionei, em uma escola pública italiana, crianças de sete a oito anos receberam duas fatias de pão: uma de fermentação natural e outra de fermento biológico (ou lievito di birra, como eles chamam). Apenas pelo cheiro, deveriam identificar qual era qual. Para surpresa geral, reconheceram com facilidade as diferenças entre os tipos de fermento.
Talvez esse caso tenha desmontado uma ideia que eu mesma já carregava: a de que crianças comem apenas certos tipos de alimentos, são restritas e sabem pouco sobre comida.
Mas, claro, de quais crianças estamos falando? Nossos julgamentos geralmente partem da nossa bolha – nosso espaço, nosso tempo, nossa posição social, nossos significados. Ainda assim, no Brasil de 2025, essa ideia do “paladar infantil” como restrição continua se espalhando. Por que insistimos nela?
Se voltarmos o olhar para a história, perceberemos que a preferência pelo gosto doce foi frequentemente associada à infância e à feminilidade. Esse vínculo não surgiu por acaso – ele foi construído ao longo do tempo e reforçado por discursos que relacionam o doce à fragilidade, à imaturidade e até mesmo à inferioridade.
O historiador Florent Quellier, ao analisar uma obra clássica de Grimod, ressalta essa ideia: “A propensão das mulheres e das crianças pelas guloseimas é explicada por um gosto natural pelo açúcar. Sem necessitar de aprendizado algum, este sabor convém perfeitamente aos seres tidos como fracos e imaturos porque imperfeitos ou incompletos”.
O paladar, portanto, não é apenas uma questão biológica ou individual – ele é atravessado por construções sociais que envolvem gênero, idade e uma série de preconceitos. O que consideramos sofisticado ou infantil, legítimo ou questionável está profundamente ligado à cultura e às hierarquias que estabelecemos dentro dela.
Mas saber reconhecer características sensoriais não é dom – é exercício, é treinamento, como diria o filósofo Nicola Perullo. Pesquisas científicas recentes sugerem que as crianças geralmente são mais abertas às experiências sensoriais, não mais restritas. Parece mesmo que somos nós, ao longo da vida, os responsáveis por limitar suas possibilidades. Por isso, prefiro dizer: fulano tem paladar . As crianças não precisam desse estigma.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.