
Médica presa por 'fingir' ser médica: o Brasil da inversão jurídica
Quando uma médica é presa por 'fingir ser médica', enquanto tantos falsários continuam impunes, está claro que cruzamos a fronteira do absurdo
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No último dia 20, o Brasil testemunhou mais um capítulo lamentável da judicialização da medicina: uma médica com registro ativo no CRM foi presa preventivamente pelo suposto crime de exercício ilegal da medicina — conduta que, segundo o artigo 282 do Código Penal, é praticada por quem não possui habilitação legal para exercer a profissão. Ou seja: um crime que, por definição, poderia cometido por qualquer um, exceto por médicos.
A prisão foi realizada no Paraná, mas repercutiu nacionalmente. A justificativa? A médica estaria atuando fora da sua especialidade e promovendo o uso off label de medicamentos para emagrecimento, em especial o Mounjaro (tirzepatida). Nas redes sociais, ela se apresentava como “especialista em emagrecimento rápido”, usava marketing agressivo e vendia tratamentos que, de fato, soavam incompatíveis com as melhores práticas médicas.
Mas uma coisa é discutir infrações éticas ou propaganda enganosa, outra, muito diferente, é prender alguém por um crime tecnicamente impossível de ser cometido. A profissional em questão cursou medicina e possui registro ativo no CRM. Pode até ter extrapolado os limites éticos da profissão, flertando com a charlatanice, o que caberia análise no Conselho Regional de Medicina sobre eventuais infrações éticas. Mas, absolutamente, não se trata de uma “falsa médica”. Prendê-la por exercício ilegal da medicina é forçar a tipificação penal até o ponto do delírio jurídico.
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A reação do Conselho Federal de Medicina foi imediata: publicou nota de repúdio classificando a prisão como “absurda” e “desproporcional”, e é importante frisar: o CFM não saiu em defesa da conduta da profissional, mas da legalidade mínima que todo médico deve ter ao exercer seu ofício.
Em outras oportunidades, escrevemos nesta coluna sobre outros absurdos, como médicos proibidos de prescrever medicamentos, médicos demitidos por prestar atendimento humanizado e até médicos presos por respeitar o sigilo profissional. Contudo, agora chegamos ao cúmulo do absurdo: uma médica preso por fingir ser médica!.
Com a reiterada ocorrência destes absurdos, estamos criando um ambiente em que os médicos am a temer o simples exercício de seu ofício, pelos motivos mais absurdos. A fronteira entre o erro técnico e o crime está sendo apagada por uma sociedade ávida por culpados e por um sistema judicial cada vez mais disposto a oferecer “respostas exemplares” à sociedade por meio das mídias sociais, mesmo quando ilegais.
Apesar de tudo isso, há um outro ponto que não pode ser ignorado. Se, por um lado, a prisão é evidentemente ilegal, por outro, o caso deve servir de alerta à própria classe médica: a medicina está sendo invadida por discursos e medidas mercadológicas travestidos de boa prática da medicina. Não se pode vender “emagrecimento acelerado”, “toxica milagrosa” ou “cura metabólica” como se estivesse vendendo suplementos numa live de digital influencer. A autopromoção irresponsável, ainda que amparada por um diploma de médico, abre espaço para o descrédito da medicina de forma geral, e para reações institucionais cada vez mais radicais, como esta — que atinge não só o indivíduo, mas a própria dignidade da medicina.
A Justiça reconheceu que a prisão era descabida, e a médica em questão foi libertada poucos dias depois. Contudo, o dano já estava feito: reputação manchada, constrangimento público, insegurança institucional. E o precedente mais perigoso de todos: um médico preso por simplesmente exercer a medicina.
Se não houver um freio urgente nesse tipo de arbitrariedade, a medicina deixará de ser vocação para se tornar um risco. O medo, que antes era de errar, agora é de simplesmente atender, prescrever ou tratar. E, nesse cenário, quem perde não é apenas o médico — é toda a sociedade, que se vê órfã de segurança, de justiça e, principalmente, de bom senso.
PS: Na semana ada, tive o prazer de participar como palestrante convidado de mais um Simpósio de Intercorrências Médicas promovido pela regional MG da SB. Agradeço a todos os envolvidos pela oportunidade, sobretudo o presidente da regional, Dr. Kennedy Rossi.
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Renato Assis é advogado há 18 anos, especialista em Direito Médico e Empresarial, professor e empresário. É conselheiro jurídico e científico da ANADEM. Seu escritório de advocacia atua em defesa de médicos em todo o país.
Site: www.renatoassis.com.br
Instagram: renatoassis.advogado
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.