O filme "Ainda estou aqui" e sua corrida pelo Oscar, realizado neste domingo (2/3), renovaram o interesse pelo livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, publicado pela Alfaguara em 2015.

Quem busca a obra original, no entanto, pode se surpreender com diferenças significativas entre ela e a adaptação, seja por perceber que alguns temas são mais aprofundados no livro, seja por notar que grande parte do material não chegou às telas.

O longa, mais sintético, adapta menos da metade do livro de Paiva, cujo grande assunto é a memória. Na obra escrita a doença de Alzheimer de Eunice Paiva e reflexões do autor sobre a capacidade do cérebro de armazenar informações anteriores são cruzadas com a discussão referente ao ado e à história do Brasil, que é menos linear do que o filme.

Após um preâmbulo inicial em que o autor discorre sobre a natureza das lembranças, a narrativa começa com um episódio de 30 de janeiro de 2008, quando Paiva, Eunice e sua filha mais velha, Veroca, foram ao Fórum João Mendes, no centro de São Paulo, para solicitar a interdição de Eunice, que já apresentava um quadro avançado da doença.

Na sequência, Paiva salta para 23 de fevereiro de 1996, quando sua família enfim conseguiu o certificado de óbito de seu pai graças à Lei dos Desaparecido - cena que, no filme, serve como uma ponte para separar a parte principal da trama, ambientada em 1970, do epílogo, em que Fernanda Montenegro interpreta Eunice, já idosa, reconhecendo na televisão o marido assassinado.

É só a partir do sétimo capítulo, após um terço da história, que a trama do livro se aproxima mais do filme. O leitor a a conhecer o dia a dia da casa carioca, sempre cheia de visitas, e aparecem personagens como Fernando Gasparian e Baby Bocayuva, que militaram junto a Rubens contra a ditadura. No entanto, essa convergência dura pouco.

 

Vencedor dos prêmios Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro e de Melhor Atriz (Fernanda Torres), o filme "Ainda estou aqui" (2025), de Walter Salles, se inspira em um drama real. Eunice Paiva (Fernanda Torres), mãe de cinco filhos, luta por justiça após o desaparecimento do marido, ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello). Levado de casa no Rio, ele foi torturado e morto por agentes da repressão em 1971, durante a ditadura militar. O longa foi indicado aos prêmios Oscar de Melhor Filme (nomeação inédita para o Brasil), de Melhor Filme Internacional e de Melhor Atriz Sony Pictures/reprodução
Bíblia da geração beat, o livro "On the road", do americano Jack Kerouac, foi adaptado para as telas por Walter Salles. Lançado em 2011, "Na estrada" acompanha a jornada do jovem escritor Sal Paradise (Sam Riley), de seu amigo Dean Moriarty (Garrett Hedlund) e da garota Marylou (Kristen Stewart, que fez muito sucesso na saga "Crepúsculo). Nos anos 1950 do pós-guerra, o trio cruza os EUA em busca de liberdade, antecipando a era do sexo, drogas e rock and roll Videofilmes/divulgação
"Linha de e" (2008), filme de Walter Salles codirigido por Daniela Thomas, conta a história de quatro jovens irmãos da periferia de São Paulo. Os garotos lutam para sobreviver e por seus sonhos ao lado da mãe, Cleusa, papel de Sandra Corveloni (foto), que ganhou o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cannes em 2008 Daniela Thomas/divulgação
Com atores americanos, "Água negra" (2005) é o filme de terror de Walter Salles. Remake do longa do japonês Hideo Nakata, conta a história de Dahlia (Jennifer Connely), mulher às voltas com o divórcio, que vai morar com a filha em um apartamento soturno onde água preta jorra de torneiras e o mofo invade as paredes Touchstone/divulgação
"Diários de motocicleta" (2004), filme de Walter Salles produzido por Robert Redford, acompanha o jovem Che Guevara (Gael García Bernal) antes de se tornar ícone da esquerda. Nos anos 1950, ele e o amigo Alberto Granado (Rodrigo de la Serna) viajam pela América Latina de moto, a pé e de carona. O filme foi indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado. Não levou a estatueta, mas deu ao uruguaio Jorge Drexler o Oscar de Melhor Canção Original pelo tema "Al otro lado del río" FilmFour/Divulgação
Estrelado por Rodrigo Santoro, "Abril despedaçado" (2001) se baseou no romance "Prilli y thier", do albanês Ismail Kadaré. No sertão brasileiro, o jovem Tonho é pressionado pelo pai a vingar a morte do irmão, assassinado por uma família rival. O rapaz vive o dilema de sucumbir à violência que pode lhe tirar a vida VideoFilmes/divulgação
Em 1999, "Central do Brasil" ganhou o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro, nos EUA. Na foto, o produtor suíço Arthur Cohn, Fernanda Montenegro, Vinicius de Oliveira e Walter Salles posam com o troféu. No mesmo ano, o longa foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, perdendo para "A vida é bela", de Roberto Benigni. Fernanda Montenegro foi a primeira latino-americana nomeada ao Oscar de Melhor Atriz, mas a estatueta ficou com Gwyneth Paltrow, de "Shakespeare apaixonado" Globo de Ouro/Arquivo
Em "Central do Brasil" (1998), Dora (Fernanda Montenegro) escreve cartas a pedido de pessoas analfabetas que desejam se comunicar com amores, família e amigos. Dora encontra o órfão Josué (Vinicius de Oliveira) e decide levá-lo até os irmãos, que moram no Nordeste. Em 1999, o filme ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlim, e Fernanda Montenegro levou o Urso de Prata VideoFilmes/divulgação
"O primeiro dia" (1998) é dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas. João (Luiz Carlos Vasconcelos) foge da prisão no último dia do ano, enquanto a deprimida Maria (Fernanda Torres), abandonada pelo marido, anda pelas ruas cariocas. Enquanto estouram os fogos de réveillon, os dois se encontram no topo do prédio dela, onde João busca se esconder da polícia Arte/reprodução
O drama "Terra estrangeira" (1995), de Walter Salles e Daniela Thomas, é o retrato do desalento na era Collor. Sem perspectivas no Brasil após o confisco bancário determinado pelo presidente Fernando Collor de Mello, Paco (Fernando Alves Pinto) deixa o país rumo a Portugal, onde conhece Alex (Fernanda Torres). Os dois jovens se envolvem em contrabando, enfrentam a violência e o perigo Videofilmes/divulgação
O documentário "Socorro Nobre" (1995) acompanha a presidiária de Salvador que lê reportagem sobre o artista plástico e ecologista Franz Krajcberg, torna-se iradora dele e decide lhe escrever uma carta. Os dois am a se corresponder. Mais tarde, Socorro inspiraria a personagem Dora, do longa "Central do Brasil", de Walter Salles Videofilmes/divulgação
"A grande arte" (1991) se inspira no romance homônimo de Rubem Fonseca. O fotógrafo Peter Mandrake (Peter Coyote) desembarca no Rio de Janeiro para produzir um livro sobre os "surfistas de trem". Ele se envolve com a prostituta Gisele (Giulia Gam), que é assassinada. Marie (Amanda Pays), namorada de Mandrake, é estuprada por homens no encalço dele, que decide se vingar. Miramax/divulgação
O documentário "Krajcberg, o poeta dos vestígios" (1986) aborda a trajetória do artista plástico polonês Franz Krajcberg (1921-2017), naturalizado brasileiro. Sua obra multifacetada é marcada pelo uso de elementos da natureza, como troncos de árvores, pigmentos do solo de Minas Gerais e plantas. Desenvolveu parte de seu trabalho em sua casa-ateliê em Nova Viçosa, no Sul da Bahia Videofilmes/divulgação

O livro avança além dos acontecimentos retratados na adaptação, acompanhando a vida da família Paiva após o retorno a São Paulo, a trajetória universitária de Paiva, a formação de Eunice em Direito e sua atuação na defesa dos povos indígenas, além do agravamento de sua doença.

Ao contrário da longa, o livro narra a tortura de Rubens, reconstruída a partir da imaginação de Paiva e de relatos como de Marilene Corona Franco, outra presa, e do capitão Ronald José Motta Baptista de Leão, militar envolvido nas torturas. Paiva também fala da militância de Rubens no começo da ditadura.]

Logo após o golpe, seu pai tentou escapar de Brasília, onde morava, em um avião, que foi interceptado e obrigado a pousar. Após fugir de soldados, Rubens se refugiou na embaixada da antiga Iugoslávia até conseguir um salvo-conduto para deixar o país, em junho de 1964. Ainda no mesmo ano, durante um voo para o Uruguai com escala no Rio, fugiu do aeroporto e voltou ao Brasil. Dois anos depois, em 1966, mudou-se para a casa do Leblon, cenário do filme.

Ainda, o livro possui mais espaço para trabalhar com as nuances de Eunice, embora ela seja sempre retratada sob a perspectiva subjetiva de Paiva. O escritor descreve sua mãe como uma heroína, que soube manter a postura diante das piores dores e cuidar das pessoas à sua volta, mas, ao mesmo tempo, como uma mulher fria, calculista e vaidosa. "Era prática, culta, magra, sensata, workaholic. Tudo o que não se quer de uma mãe", escreve.

Na segunda metade do livro, Paiva conta que sua mãe se negava a vender quadros e móveis caros mesmo diante de dificuldades financeiras e que, certa vez, a flagrou enchendo uma garrafa de uísque importado com um destilado caseiro, para servir às visitas. Ela não queria que os outros pensassem que sua situação havia piorado após a viuvez.

Seu pai também ganha complexidade. No relato, antes da mudança para o Rio, Rubens tirou Paiva de uma escola construtivista e o colocou em uma instituição pública, com medo de que o filho se tornasse "afeminado". O escritor também questiona a obstinação do pai, que arriscou sua segurança e a da família até o último momento, em vez de fugir para o exterior quando o cerco da ditadura se fechava.

Uma discussão apenas insinuada no filme, mas mais presente no livro, é a diversidade dentro das forças armadas. Assim como na obra original, o longa retrata um soldado que se solidariza com Eunice enquanto ela está presa no Dops e diz não concordar com o que estava acontecendo. Paiva, porém, aprofunda essa questão, afirmando que muitos militares se opam ao regime. "Sempre soubemos que nosso inimigo não vestia farda. Era um regime, não uma carreira."

O autor também deixa claro que pertencia a um estrato privilegiado da população, e conta como usou a carteira da OAB de sua mãe para se livrar da polícia, carteirada comum a filhos de advogados, juízes, promotores, deputados e ministros. "Devem ter se arrependido do local da batida policial e decidido fazer uma blitz num bairro mais pobre", afirma. Mais para frente, escreve sobre a perseguição aos indígenas na ditadura e sobre a atuação de sua mãe, como advogada, em defesa dos povos originários.

Em outra agem, especialmente contundente, ao tratar da tortura, o autor traça um paralelo entre os abusos cometidos durante a ditadura e a violência policial que persiste contra grupos marginalizados. Ele compara o que aconteceu com seu pai ao caso de Amarildo Dias de Souza, pedreiro preso em 2013 pela Polícia Militar, e narra outros episódios semelhantes.

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"Testemunhas ouviram Amarildo ser torturado por choques elétricos num contêiner anexo à UPP [A Unidade de Polícia Pacificadora instalada na favela da Rocinha]. Meu pai foi torturado num prédio do Pelotão de Investigações Criminais (PIC), onde funcionava o DOI, anexo ao I Exército, e testemunhas o ouviram gritar."

"Retiraram o corpo como retiraram o corpo do meu pai, sem testemunhas, sem alarde."

Filme "Ainda estou aqui"

(Brasil, 2024, 135 min.) De: Walter Salles. Com: Fernanda Torres, Selton Mello e Fernanda Montenegro. Classificação: 14 anos. Em cartaz nos cinemas.

Livro "Ainda estou aqui"

Autoria: Marcelo Rubens Paiva

Editora: Alfaguara

Preço: R$ 79,90 (296 págs.); R$ 27,90 (ebook)

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