Livros pertencentes ao poeta alagoano Jorge de Lima que quase viraram papel reciclado em Belo Horizonte geraram polêmica nas redes sociais, chamando a atenção para o negócio do descarte de obras literárias.
Quanto custa um livro usado? Está aí uma pergunta com várias respostas. Coleção lançada em meados dos anos 1950, “Biblioteca musical” reuniu em edições caprichadas, de capa dura, biografias de cânones da música clássica. Alguns volumes – dedicados a Mozart, Haendel e Brahms – estavam jogados numa caixa no galpão de comércio de papel Novo Mundo, em Belo Horizonte, visitado pelo Estado de Minas.
Seu destino seria a reciclagem de papel. A Estante Virtual, plataforma que abrange sebos de todo o país, comercializa 20 exemplares daquela edição dedicada a Brahms. O volume pode ser adquirido por R$ 10 até R$ 138,78. Estado de conservação, tiragem, número da edição, autógrafo do autor são fatores que interferem no preço.
“Já comprei um João Cabral de Melo Neto por R$ 50 na própria Estante Virtual e vendi por R$ 4,5 mil”, conta Mário Andrade, livreiro de BH especializado em obras raras. “A pessoa que me vendeu não tinha percebido que era a primeira edição de um livro artesanal (confeccionado pelo próprio João Cabral) e com dedicatória para o Manuel Bandeira, que era primo dele”, explica
Autógrafo de Oswald
Fernando Fonseca, do sebo belo-horizontino Rosaes, diz que isso é comum. “Já comprei um Oswald de Andrade autografado. Mas não tinha certeza de que a era dele. Corri para a Biblioteca Pública, fui à seção de livros raros e a bateu.” Conseguiu ótimo valor pelo exemplar.
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Autógrafo de autor de sucesso valoriza, mas até isso é relativo. “Tenho um Dalton Trevisan autografado, o que é um pouco raro, pois ele não fazia sessão de autógrafos”, diz Fonseca. “Fernando Sabino gostava de autografar, então existem vários dele. Já Carlos Drummond não gostava de sessão de autógrafos, Rubem Fonseca detestava. Então, colecionadores pagam um valor alto”, explica Andrade.
De quando em vez, relíquias vão parar nos galpões de papel. Garimpeiro, Valdeir do Rosário Oliveira já salvou do descarte primeiras edições de Oswald e Drummond. “Era ‘A rosa do povo’ autografado”, conta. Situações assim, obviamente, são tão raras quanto os livros.
'Vida de Brahms', livro da coleção 'Biblioteca musical' que custa R$ 138 em sites especializados, é um dos exemplares destinados à trituração em empresa de comércio de papel de BH
Proprietário da Crisálida, sebo com duas lojas e acervo de 225 mil exemplares, Oséias Ferraz tem livros raros, mas este não é seu foco principal.
“Meu negócio é a circulação de livros comuns. Acho que existe mais é a caricatura de sebo como local para livros raros. Como negócio, para mim não funciona, pois comprador de livro raro é mais raro do que livro.”
Ferraz mantém o acervo de ciências humanas e literatura adquirindo títulos de clientes – “quem compra em sebo acaba vendendo também” –, lotes de gente que se desfaz de bibliotecas e de pessoas como Edes Antônio dos Santos. Aposentado, depois de trabalhar por anos vendendo enciclopédias Britannica e Mirador – “hoje ninguém compra” –, ou a revender livros usados. Encontra-os em todo tipo de lugar, inclusive na rua.
No quilo
Santos distribui seu cartão por onde a. Há pouco tempo, ele conta, fez três ou quatro viagens de picape para levar uma grande biblioteca privada. “Desmantelo e depois vendo ‘no monte’, nos sebos.” O valor de cada exemplar vai de R$ 5 a R$ 10.
“O pessoal que leva livro para reciclagem não tem conhecimento da área. Vendem no quilo, bem barato”, acrescenta. Santos sabe que entre os volumes nos montes podem estar exemplares raros, que atingem até quatro dígitos. Mas prefere ganhar na quantidade.
Banca dos descartados
Desde 2004 ocupante da cadeira 19 da Academia Brasileira de Letras, o ensaísta, professor e crítico Antonio Carlos Secchin é um dedicado bibliófilo. A coleção (20 mil volumes) é eclética, mas o destaque é para literatura brasileira.
“No lixo eu não diria, mas há uma famosa feira de antiguidades na Praça XV (Centro do Rio) que hoje em dia quase não tem livro. (No ado) Havia um pessoal com banquinhas de livros descartados. Salvei muito livro que poderia ter sido jogado fora”, conta Secchin, célebre “rato de sebo”. Conheceu tantos, e tão bem, que em 2003 lançou o “Guia dos sebos das cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo”. O título também incluiu o comércio de livros usados de outras 12 capitais, incluindo BH.
Integrante da Academia Brasileira de Letras e 'garimpeiro' de raridades, Antonio Carlos Secchin chama de 'ousadia' os exageros que cometeu em busca de um livro raro
A frequência ficou no ado, diz Secchin. “O garimpo físico que faço hoje é em torno de 1% do que já fiz. Uma razão é porque consegui muita coisa. Outra é que a busca real ou a ser virtual.” O comércio entre os especialistas, o acadêmico diz, atualmente ocorre no mundo on-line. Não só em lojas, como também por meio dos leilões. Muito mais prático, mas há um porém.
José Mindlin, o mestre
“O ideal era na época do Mindlin (o grande bibliófilo do Brasil moderno, cujo acervo, de 60 mil livros, compõe a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, doada pela família à USP). As pessoas iam atrás dele. Isso acontece hoje, mas é raro por uma razão simples: para o livreiro, quanto mais alto for o preço, melhor. A relação de amizade entre livreiro e cliente foi atravessada pela existência dos leilões.”
Secchin não chama de loucuras, mas de ousadias, exageros cometidos em busca de um livro raro. “Vez por outra posso ter ido além do que o livro valia. Procuro istrar racionalmente, pois se você paga 10 vezes o preço do que um livro vale, logo vem a sensação desagradável de ter feito bobagem. Mas não me arrependo”, acrescenta ele, citando novamente o mestre José Mindlin. “Ele dizia se arrepender dos livros que não tinha comprado.”
Parklet literário
A Quixote criou sua própria biblioteca. No parklet montado em frente à livraria, na Rua Fernandes Tourinho, na Savassi, em Belo Horizonte, foram colocadas caixas para quem quiser doar livros. “A intenção é que haja troca, pois a gente insiste na missão da leitura”, afirma o livreiro Alencar Perdigão.