Livro resgata a Revolta de Carrancas, o 13 de maio sangrento de Minas
Em 'Caramurus negros', Marcos Ferreira de Andrade analisa a insurreição de escravizados que matou 33 pessoas, entre cativos e senhores, há 192 anos no Sul de MG
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Siga noNesta terça-feira (13/5), dia para lembrar o fim da escravidão no Brasil com a da Lei Áurea, há outro fato histórico que a ao largo do conhecimento da maioria dos brasileiros e vai ganhar luz nas páginas de um livro a ser lançado no fim deste mês. Em 13 de maio de 1833, portanto 55 anos antes da abolição, o Sul de Minas foi palco de insurreição sangrenta que marcou o Império e deixou 33 mortos. Entre eles, 21 escravizados, nove integrantes da família Junqueira, um agregado e duas “pessoas de cor”. Conhecido como Revolta de Carrancas, o episódio resultou na maior condenação coletiva de escravizados à pena de morte durante o período escravatura no país.
Fruto de mais de 30 anos de pesquisa, a história está contada em “Caramurus negros: a revolta dos escravos de Carrancas – Minas Gerais (1833)” (Chão Editora), com organização e posfácio do mineiro Marcos Ferreira de Andrade, doutor em história pela Universidade Federal Fluminense e professor do curso de história da Universidade Federal de São João del-Rei.
O livro traz a transcrição de parte dos autos do processo crime da revolta e posfácio que evidenciam, segundo o autor, como as elites regionais e o próprio estado imperial lidaram com os rebeldes insurgentes.
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Ferreira de Andrade se debruçou sobre diversas fontes, em várias etapas de trabalho. “Mas a primeira e mais impactante é o processo criminal instaurado por ocasião da revolta, que consta de mais de 400 folhas manuscritas e faz parte do acervo dos arquivos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) de São João del-Rei”, informa.
Outros documentos, como correspondências trocadas entre autoridades da época, mapas, notícias em jornais e discursos no parlamento, foram localizados no Arquivo Público Mineiro, em Belo Horizonte, além da Biblioteca Nacional e o Arquivo Nacional, ambos no Rio de Janeiro. Informações sobre senhores e escravizados vieram de assentos paroquiais de batismo, casamento e óbito.
Quem eram os caramurus? Ao se autodenominarem assim, escravizados rebelados afirmavam seu protagonismo político diante das identidades em disputa no período. Havia pouco mais de uma década, o Brasil se tornara independente de Portugal. As elites políticas e escravistas disputavam espaço na construção do estado nacional com projetos distintos, muitas vezes conflitantes.
“Em várias províncias, essas fissuras estavam muito presentes. A Revolta de Carrancas deve ser compreendida no contexto mais amplo de intensos conflitos e repressão militar”, afirma o autor.
Dois tempos
ados quase dois séculos, o dramático episódio de luta pela liberdade tem muito a ensinar. “Em primeiro lugar, que todos nós, brasileiros, temos o direito de conhecer nosso ado, sangrento ou não. Nesse sentido, os historiadores têm papel fundamental e compromisso com o que chamamos de verdade histórica, resultado de um trabalho investigativo rigoroso, de confrontação e de análise das fontes para podermos elaborar uma interpretação do ado.”
Andrade destaca a importância do conhecimento científico de natureza histórica e do papel das universidades e seus projetos de pesquisa, os quais permitem vasculhar arquivos e porões do Judiciário e trazer à tona histórias relegadas a segundo plano por anos e anos.
“A Revolta de Carrancas permaneceu praticamente desconhecida dos estudiosos e da sociedade por mais de um século e meio. Portanto, acho que esse é o sentido principal. Esta é a contribuição social e política que o historiador pode prestar à sociedade na compreensão do ado e das lutas populares pela liberdade – neste caso, da população negra contra a escravidão.”
Nas páginas do livro, são encontrados os personagens Ventura Mina, André Crioulo, Antônio Benguela, Joaquim Mina, Antônio Rezende e outros que os acompanharam (incluindo mulheres e crianças). De acordo com o autor, o episódio permite compreender o cotidiano da escravidão, bem como relações que se estabeleceram, alianças, hierarquias e disputas na vivência em cativeiro “e, em especial, os sonhos e projetos de liberdade que acalentavam”.
Ainda que pudessem imaginar as graves consequências de participar de uma insurreição e tenham sido derrotados e punidos de forma exemplar, “os audazes e destemidos caramurus negros colocaram em prática seus projetos de liberdade em 13 de maio de 1833, há 192 anos, e, assim, entraram para a história”.
“CARAMURUS NEGROS: A REVOLTA DOS ESCRAVOS DE CARRANCAS – MINAS GERAIS (1883)”
• Org: Marcos Ferreira de Andrade
• Chão Editora
• 256 páginas
• R$ 71
ENTREVISTA
Marcos Ferreira de Andrade 'decifrou' importante documento sobre a luta dos negros pela liberdade
O senhor pesquisou a Revolta de Carrancas durante 30 anos. Quais foram as fontes de seus estudos?
As fontes são de ordem diversa e envolveram várias etapas da pesquisa. Como investigo essa história há mais de três décadas, várias delas foram localizadas em estágios distintos da investigação. Mas a primeira e a mais impactante é o processo criminal instaurado por ocasião da revolta, que consta de mais de 400 folhas manuscritas e faz parte do acervo do Arquivo Histórico do Iphan de São João del-Rei. Outros documentos, como correspondências trocadas entre as autoridades da época, mapas, notícias em jornais, discursos no parlamento, foram localizados no Arquivo Público Mineiro, na Biblioteca Nacional e no Arquivo Nacional, ambos no Rio de Janeiro. Para informações tanto sobre senhores quanto escravos foram consultados os assentos paroquiais de batismo, casamento e óbito. Nos últimos anos, venho desenvolvendo uma pesquisa sobre a memória do cativeiro na região onde ocorreu a revolta e também sobre a memória do episódio. Recentemente, descobri que o escritor Oswald de Andrade (1890-1954) trouxe a memória da revolta para um de seus poemas, publicado na obra “Pau Brasil”, o poema “Levante”. Dois de seus tios-bisavós paternos foram casados na família Junqueira, justamente das duas fazendas onde ocorreu a insurreição.
Quais foram suas principais descobertas?
Como trabalho com essa história há mais de três décadas e o rigor da pesquisa histórica envolve várias etapas, foi preciso primeiramente me inteirar dos estudos sobre a escravidão, compreender como o sistema escravista funcionava, quais seus mecanismos de expansão, tensão e distensão. Entender como o sistema escravista funcionou na capitania e província de Minas Gerais, dependência do tráfico transatlântico de cativos e a procedência dos escravos. Era preciso entender também a estrutura política do Império, o contexto de formação do estado nacional do Império e a importância de determinados atores da elite política e econômica, sobretudo da província de Minas Gerais. A descoberta inicial é que estava diante de um importante documento que remetia à luta dos negros pela liberdade e inúmeros aspectos do cotidiano da escravidão no Sul de Minas.
Por que o senhor se interessou pelo assunto?
Em 1992, depois de concluída minha graduação em filosofia na Universidade Federal de São João del-Rei, ingressei em um projeto de pesquisa que teve a finalidade de indexar e catalogar os processos criminais do século 19. Essa documentação fazia parte do acervo do Museu Regional naquela época. Posteriormente, ela ou a fazer parte do arquivo histórico do Iphan de São João del-Rei. Quando a equipe de pesquisadores deparou com o processo volumoso que eu aria a denominar de Revolta dos Escravos de Carrancas, vimos que estávamos diante de um documento da mais alta importância para a história da escravidão brasileira e que mais tarde iria adquirir o status de documento/monumento. Foi necessário um trabalho lento de transcrição da documentação manuscrita de 460 folhas. Dada a importância do documento, me interessei de imediato em desenvolver pesquisa sobre a história do levante, pois tinha interesse em dar continuidade aos meus estudos. Prestei a seleção para o mestrado no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1993, e fui aprovado para investigar a rebeldia escrava no período das Regências (1831-1840).