DESCOBERTA RARA

Cemitério pode revelar história de escravizados em Minas

Pesquisadores da UFMG começam a explorar terreno em fazenda colonial onde foram sepultadas cerca de 200 pessoas de origem ou ancestralidade africana

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Bom Jesus do Amparo – Uma pesquisa arqueológica que começa a ser feita em Bom Jesus do Amparo, a 73 quilômetros de Belo Horizonte, representa a expectativa de trazer à tona informações importantes sobre a vida dos escravizados no estado, que constituíram uma parcela significativa da população mineira no período colonial. Embora na época chegassem a representar quase um terço dos moradores de Minas Gerais, esses habitantes tiveram sua história invisibilizada, mesmo após a chamada abolição da escravatura, determinada por uma legislação de duas linhas, a Lei Áurea, publicada em 13 de maio de 1888, que não garantiu reparação nem a preservação da escassa memória da população trazida à força da África.

No local do estudo, a 3,5 quilômetros da sede do município, existe, de acordo com registros documentais e orais, um cemitério de escravizados onde podem estar enterrados os restos mortais de cerca de 200 pessoas. Os sepultados nessa área estão nomeados em um raro livro de óbitos, que registrou o falecimento de escravizados e alguns poucos alforriados, entre 1847 e 1877, no então distrito de Bom Jesus do Rio São João, hoje Bom Jesus do Amparo.

O cemitério, já tombado como patrimônio municipal da cidade, começa a ser estudado por pesquisadores do Departamento de Antropologia e Arqueologia da Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (DAA/Fafich/UFMG), que desconheciam a existência do sítio arqueológico, cuja história faz parte da memória de moradores de Bom Jesus do Amparo há mais de um centena de anos, e vem sendo reada de geração a geração. Uma população também responsável pela preservação do cemitério, local de ritos religiosos.

Fazenda Rio São João, hoje tombada pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
Fazenda Rio São João, hoje tombada pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) Prefeitura de Bom Jesus do Amparo/Reprodução

O terreno fazia parte da Fazenda do Rio São João, que teve como primeiro proprietário o capitão português João Teixeira Alves, que chegou ao Brasil no século 18, atraído pela descoberta de ouro. Posteriormente, parte da propriedade ou para outro português, João da Motta Ribeiro, genro do proprietário original.

Atualmente, o cemitério está localizado nos limites da Fazenda do Rosário, desmembrada da Rio São João e que ainda hoje pertence à família Motta, responsável, junto da comunidade, pela preservação do local.

O campo santo

Arqueólogos da UFMG foram contatados pela Prefeitura de Bom Jesus do Amparo, por meio do secretário municipal de Cultura, Eduardo Motta. Há duas semanas, estiveram no local para conhecer o campo santo, como também são chamados os cemitérios.

Expectativa é tornar o cemitério Patrimônio Histórico Nacional
Expectativa é tornar o cemitério Patrimônio Histórico Nacional Leandro Couri/EM/D.A Press

A intenção da istração municipal, segundo o secretário, é delimitar a área para posterior escavação, na tentativa de localizar ossadas para estudo. Também é considerada importante a possibilidade de estarem enterrados junto dos corpos objetos pessoais e religiosos, tanto católicos quanto de religiões de matriz africana.

A intenção é que tudo isso, diz o secretário, faça parte de um museu em processo de criação, a ser instalado em um casarão histórico já adquirido pelo município.

Oportunidade rara de “ouvir” o ado

Especialista em análise de esqueletos, Tiago Pedro Ferreira Tomé, bioarqueólogo e professor do Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG, afirma que a possibilidade de fazer intervenções abaixo da superfície é uma “rara oportunidade de analisar, por via exatamente dos ossos, as condições de vida dessas pessoas”. “No Brasil, não temos tantos cemitérios ou contextos funerários de pessoas onde temos a certeza de que foram escravizadas, como é o caso daquele local”, destaca.

Eduardo Motta, secretário municipal de Cultura e descendente da família que preservou o espaço
Eduardo Motta, secretário municipal de Cultura e descendente da família que preservou o espaço Leandro Couri/EM/D.A Press

“Na realidade, as populações escravizadas estão também invisibilizadas na realidade arqueológica. Temos mais dados da população europeia do período colonial ou de populações indígenas pré-coloniais e quase nenhuma informação sobre as populações escravizadas”, completa o estudioso.

De acordo com o secretário municipal de Cultura, a história oral de Bom Jesus do Amparo dá conta de que os escravizados eram enterrados com todos seus pertences para encerrar seu ciclo na terra sem deixar vestígios. “As prospecções arqueológicas vão nos dar respostas”, assegura.

Registros inéditos

Para o professor Tiago Pedro Ferreira Tomé, o local tem peculiaridades como a existência do livro de óbitos e o fato de haver pessoas que estão diretamente ligadas, por via familiar, aos proprietários originais da Fazenda Rio São João – que tiveram o cuidado de preservar a história e guardaram, por transmissão oral, ao longo de todos estes anos, a localização do cemitério e também o caderno com a relação dos mortos.

Ele explica que os trabalhos ainda estão em fase inicial, com a transcrição na íntegra do livro de óbitos, onde estão registrados nome, idade e causa da moléstia que vitimou os escravizados ali enterrados. Também será feita, segundo o estudioso, uma pesquisa arqueológica para delimitar melhor a área, a fim de registrar o sítio junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que mantém cadastro oficial dessas áreas.

Cercado de palmeiras consideradas sagradas e com cruzeiros em madeira de lei, cemitério é tombado pelo município de Bom Jesus do Amparo
Cercado de palmeiras consideradas sagradas e com cruzeiros em madeira de lei, cemitério é tombado pelo município de Bom Jesus do Amparo Leandro Couri/EM/D.A Press

“Se não constar no cadastro, é como se não existisse. O local, por enquanto, só tem proteção em nível municipal, mas é importante integrá-lo a esse cadastro nacional, primeiro o antes de garantir o tombamento nacional e, a partir daí, estabelecer quais serão as estruturas futuras de pesquisa”, detalha o professor.

O Morro do Cruzeiro

De acordo com a história contada de geração para geração, no local do cemitério dos escravizados há uma cruz centenária feita de braúna-preta, árvore nativa da região, hoje ameaçada de extinção, muito utilizada durante o período colonial para a construção de cercas, vigas e pilares devido à sua resistência e durabilidade.

Também de braúna, relata o secretário de Cultura de Bom Jesus do Amparo, Eduardo Motta, era feita a cerca que delimitava a área do cemitério, mas os tocos foram retirados do local, em data desconhecida. Hoje o sítio é sinalizado por troncos de eucalipto.

Motta conta que há muitos anos a cruz original começou a tombar, e outra foi providenciada para substituí-la. “Quando foram tirar a antiga, encontraram ossadas no local, então resolveram deixá-la e colocaram outra logo em frente”, afirma.

O cemitério fica em uma mata fechada, em um local conhecido como Morro do Cruzeiro, e está cercado de cinco palmeiras de dendê, plantadas em semicírculo, espécie nativa da África e considerada sagrada pelos povos africanos. O terreno pertence aos pais de Gustavo Motta e Leonardo Motta, descendentes de João da Motta Ribeiro, hoje responsáveis pela fazenda, que cederam o terreno para a prefeitura para ser estudado e preservado.

A história dessas palmeiras é nebulosa, mas, de acordo com o registro de tombamento do cemitério, teriam sido plantadas na década de 1970, provavelmente por descendentes dos escravizados. O cemitério desde os tempos remotos e ainda hoje é palco de celebrações religiosas. Em todos os meses de maio são realizadas cerimônias em homenagem à alma dos que foram sepultados no campo santo.

De acordo com Gustavo Motta, a família tem uma relação de muito respeito pela preservação do espaço, onde foram enterrados os escravizados da Fazenda do Rosário, que pertencia ao clã. Era um dos terrenos integrantes do conjunto da Fazenda Rio São João, de propriedade de Moacir de Figueiredo Motta e sua esposa, Maria Beatriz de Pinto Coelho Motta. “Maria Beatriz, apelidada de dona Lilita, era muito religiosa e rezava diariamente um terço no cemitério, em respeito às almas dos escravizados. Anualmente celebrava missa no mês de maio, e sempre conservava as plantas do local”, conta.

Ocultos na história

Historiadora e bisneta de escravizados da fazenda Rio São João, Angela Aparecida Ferreira atribui a preservação da história do cemitério à tradição da oralidade, marca da cultura africana, transmitida aos afrodescendentes. “Contar a história vivida e o jeito de viver foi uma estratégia de resistência ao esquecimento”, descreve ela, autora de uma tese sobre a origem das comunidades negras do município.

 

Angela Ferreira contesta a justificativa usada amplamente, de que não há registro escrito dos escravizados no Brasil, o que explicaria o fato de a história da vida e também da morte dessa população ser invisibilizada ou contada somente pela ótica dos exploradores. “Acredito que essa informação sobre a escassez de documentação seja equivocada, uma vez que não existe investimento em pesquisas e valorização do trabalho do historiador, profissional especializado para realizar o trabalho de pesquisa”, afirma.

Segundo ela, aspectos como o modo de vida, o trabalho, estratégias de sobrevivência, a arquitetura das casas, formas de utilização dos recursos da natureza para criação de utensílios domésticos foram aprendizados transmitidos pela oralidade entre os integrantes dessa população. “Por meio da oralidade sobre o jeito de fazer, os escravizados transmitiram seu legado cultural aos seus descendentes, memórias readas de geração em geração”, assegura.

As  origens

Com cerca de 5.600 habitantes atualmente, a cidade de Bom Jesus do Amparo, na Região Central de Minas, teve como fundador o coronel João da Motta Ribeiro, que chegou de Portugal no século 18 em busca de ouro. Ele se estabeleceu na região, a cerca de 5 quilômetros da sede atual, onde fundou a Fazenda Rio São João, hoje tombada pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), cujo casarão terminou de ser construído no começo de 1815.

A família de Motta Ribeiro doou uma porção de terras à Igreja para a construção do santuário do Senhor Bom Jesus, de quem era grande devota. Fez trazer de Portugal uma imagem do padroeiro, adquirida na cidade de Amparo, e a colocou na capela, uma joia da arquitetura barroca, construída no lugarejo pelos escravos e ainda hoje preservada. A freguesia foi elevada a distrito de Caeté em 1842. Pertenceu, mais tarde, ao município de Santa Bárbara e, posteriormente, a Barão de Cocais, de onde se emancipou em 1953.

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