BH: pioneiros do carnaval avaliam o 'gigantismo' da folia atual
Da resistência à profissionalização, pioneiros do carnaval discutem os impactos da expansão, a luta por identidade e o futuro da folia em BH
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Siga noQuando os primeiros blocos começaram a desbravar as ruas de Belo Horizonte no fim dos anos 2000, ninguém poderia imaginar que, em pouco mais de uma década, a capital mineira se tornaria um dos maiores redutos carnavalescos do país. O que foi iniciado como um ato de resistência, uma batalha pelo direito de ocupar o espaço público, agora enfrenta o dilema de manter viva a identidade do carnaval diante da profissionalização e da chegada de grandes patrocínios.
O Estado de Minas conversou com representantes de alguns dos blocos precursores do carnaval para entender como enxergam o rumo que a folia belo-horizontina tomou. Entre elogios, críticas e desabafos, uma coisa é certa: o Carnaval de BH não é mais o mesmo.
Em 2009, quando o Bloco do Peixoto fez seu primeiro desfile, Belo Horizonte ainda despertava para o carnaval de rua. A cada edição, mais foliões se juntavam ao cortejo pelas ruas Padre Rolim e Maranhão, no Bairro Santa Efigênia, na Região Leste de BH. Com a banda no chão e marchinhas à moda antiga, eles mantêm o tradicional trajeto até a Praça Floriano Peixoto, que lhe empresta o nome. De lá para cá, foram necessárias mudanças para se adequar ao tamanho que o bloco foi tomando, como a adoção da corda, que separa músicos e foliões.
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Para Elisa Marques, fundadora do bloco, porém, essa barreira impõe uma ruptura na dinâmica do bloco e quebra a horizontalidade que sempre o caracterizou. “Eu não queria que o bloco se tornasse um espetáculo para ser assistido. Acho muito bom que todos possam curtir juntos, sem hierarquização. Mas se mostrou importante (o uso da corda) para preservar o andamento e a segurança do folião e dos músicos. São transformações com as quais a gente vai lidando”, reflete.
Se antes a luta era para ressuscitar o Carnaval de rua, hoje a resistência se dá na tentativa de manter viva a identidade da festa. Mesmo após 16 anos de um desfile pacífico, o Peixoto ainda enfrenta entraves para garantir a manutenção de seu trajeto tradicional, diz Elisa. “Foi um desafio garantir nossa chegada à praça. E o Peixoto se mantém como resistência, de um bloco de desvio, dentro daquele espaço que hoje em dia é meio que o epicentro do carnaval comercial, contrapondo a essa escala dos grandes blocos”, relata.
E é isso, na avaliação de Elisa, que faz com que os blocos de rua continuem sendo espaços de resistência e valorização de pautas sociais. "Nunca deixou de ser político, justamente porque esse embate continua existindo. Ainda hoje, precisamos batalhar para continuar existindo, para não sermos engolidos. Desde o ponto básico, de garantir o direito de ar pelas ruas que sempre percorremos, de sermos respeitados nas negociações com os órgãos públicos, até pelas temáticas, pelos lugares onde os blocos am”, afirma. “Depois de 16 anos, o Peixoto merece ter seu trajeto consolidado, sua casa garantida”, completa.
Ainda hoje, precisamos batalhar para continuar existindo, para não sermos engolidos.
Elisa Marques, fundadora do Bloco do Peixoto
Por outro lado, para a fundadora do Peixoto, a efervescência do Carnaval de Belo Horizonte abriu portas para novos músicos, especialmente percussionistas e instrumentistas de sopro, que encontram nos blocos um espaço de aprendizado e expressão. No Peixoto, essa base musical se fortalece na Casa Floriano Peixoto, a sede do grupo, onde ensaios e oficinas mantêm a chama da tradição acesa.
Neste ano, pela primeira vez, o bloco contou com uma equipe extra de organização e conseguiu se estruturar financeiramente por meio de uma vaquinha coletiva, seguindo o caminho de outros blocos independentes. “Foi um experimento, mas já fez uma diferença enorme. Estamos aprendendo a crescer sem perder a essência”, diz Elisa.
Carnaval espontâneo
A corda também foi um “mal necessário” no Tico Tico Serra Copo, que nasceu nas montanhas do Bairro Serra, mas, a cada ano, escolhe um trajeto pautado por uma causa social ou ambiental. "Nossa principal motivação hoje é continuar apoiando projetos, tornar públicas essas pautas e fortalecer a luta das comunidades locais e ancestrais, questões relativas à água e à defesa da Serra do Curral", afirma Joseane Jorge, uma das organizadoras do bloco.
Sem ambições de ter patrocínios, o Tico Tico mantém-se fiel a um Carnaval espontâneo, livre de amarras comerciais. “Nos sentimos parte desse carnaval que está se formando. Surgimos sem a intenção de virar um grande bloco. A gente acredita mesmo é nesse carnaval mais espontâneo, nessa força do comum", diz Joseane.
O movimento do Tico Tico se aproxima da mesma lógica da Praia da Estação, que nasceu em resposta às políticas públicas restritivas do início dos anos 2010. "Queríamos e ainda queremos estar na rua, experimentar a cidade sem tantas regras impostas de cima para baixo. A gente está ali num lugar de troca com as pessoas, de criar outras formas de estar na cidade", explica.
O investimento está sendo direcionado para um Carnaval que não tem a identidade de Belo Horizonte
Joseane Jorge, uma das organizadoras do bloco Tico Tico Serra Copo
Mas colocar um bloco na rua, hoje, significa lidar com uma série de exigências, avaliadas por quem "estava lá no começo" como burocráticas, que nem sempre dialogam com a realidade dos cortejos de blocos menores. Algumas destas normas, como a dispersão em horários rígidos, são vistas como artificiais e que ignoram a dinâmica natural da festa.
"É completamente antinatural. Se você está em um bloco que se entende como uma manifestação espontânea, não tem como, às 19h, ter uma dispersão imediata das pessoas. Elas vão saindo aos poucos, formando outros grupos. E isso não fazia sentido ali onde a gente estava, na beira de um córrego”, conta Joseane, em referência ao desfile do último domingo (2/3) pelo território do Ribeirão da Onça, no Bairro Ribeiro de Abreu, na Região Nordeste de BH. “Podia ir até as 20h, sendo uma coisa mais tranquila. E a polícia já chega querendo dispersar. Já teve ocasiões de soltar bombas de gás lacrimogêneo. Essa ação mais agressiva não tem nada a ver, são blocos tranquilos, sem furtos, sem confusão”, aponta.
Preocupações
A crescente visibilidade do Carnaval de BH, embora traga benefícios para o turismo e a economia, levanta preocupações a blocos independentes como o Tico Tico. "O investimento está sendo direcionado para um carnaval que não tem a identidade de Belo Horizonte", reforça Joseane. Ela acredita que a espontaneidade foi o que fez o carnaval belo-horizontino crescer e teme que esse espírito se perca.
"Não sei qual será o destino dos blocos menores como o nosso, que já virou um bloco grande, mas sem a intenção de crescer mais. Não dá para negar que tem vários blocos maiores e que eles funcionam dessa forma, mas acredito que é preciso estabelecer outras formas, mais adequadas, para dialogar com esses blocos, que estão nesse carnaval de luta e de pessoas mesmo”, avalia.
Críticas
O soteropolitano Rodrigo Baiano, fundador do Bloco Approach, enxerga o crescimento do Carnaval de Belo Horizonte com um olhar mais crítico. Um dos primeiros blocos a misturar rock com a folia, o Approach nasceu em 2009 e fez história com seus shows no Bar Brasil 41, no Bairro Santa Efigênia. Mas, em 2025, pela primeira vez, não saiu. O motivo? Falta de estrutura, dificuldades de financiamento e o desânimo de lutar contra a burocracia, segundo ele.
“Acho muito legal ter esse evento na cidade, mas bato na tecla de que o crescimento desmedido da festa acaba sufocando quem nunca quis —e nunca pretendeu— se tornar um megabloco. Chega uma hora que vai mudando o caráter da festa, perdendo a força espontânea. Aí pode acontecer o fim de blocos”, aponta.
Chega uma hora vai mudando o caráter da festa, vai perdendo a força espontânea. Aí começa a ter o fim dos blocos
Rodrigo Baiano, um dos fundadores do Approach