Um em cada 10 mineiros vive perto de barragens em risco de colapso
Cruzamento de dados feito pelo EM considera números do Censo 2022 e da Agência Nacional de Mineração (ANM). São 1,8 milhão de pessoas nessa condição
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Siga noO lugar onde somos criados sempre tem um espaço especial nas nossas lembranças e em nosso coração. É nossa casa, nossa história. No caso de José Roberto Pereira, porém, a fazenda da família, no distrito de Vieiras, zona rural de Itatiaiuçu (Grande BH), virou sinônimo de inquietação.
Por um lado, o imóvel onde os irmãos Pereira criam legumes, verduras, frutas e animais ainda abriga memórias da enorme parentada, formada por cerca de 50 primos. Por outro, representa o tormento de estar situada a cerca de cinco quilômetros (em linha reta) da Barragem Serra Azul, istrada pela ArcelorMittal na cidade.
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A represa está no nível três, o mais crítico da escala de risco, desde 2019, diante da alta possibilidade de colapso da estrutura construída por alteamento a montante, modelo semelhante ao das tragédias de Mariana e Brumadinho.
“Minha mãe dorme com a luz acesa todos os dias. Ela pensa que, se for necessário correr durante a madrugada, ganha mais agilidade assim. Vivemos em um campo minado”, diz Zezé de Vieiras, como é conhecido o personagem que abre esta reportagem. A dura realidade da família dele, no entanto, não é exceção.
Levantamento do Núcleo de Dados do EM mostra que cerca de 1,8 milhão de mineiros vivem nas proximidades de barragens em algum nível de alerta no estado, uma população maior do que a de todas as cidades mineiras, com exceção de BH. Cerca de 10% da população do estado convive com esse risco.
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O levantamento da reportagem cruza dados da Agência Nacional de Mineração (ANM) com informações do último Censo do IBGE, realizado em 2022. Minas, atualmente, tem 43 represas em algum nível de alerta, distribuídas por 20 municípios. Somadas, elas guardam 525,5 milhões de metros cúbicos de rejeito, o suficiente para encher cerca de 210 mil piscinas olímpicas.
A apuração do EM considerou um raio de 10 quilômetros ao redor dessas barragens ameaçadas no levantamento em questão. Portanto, o número de 1,8 milhão de pessoas inclui atingidos direta ou indiretamente, em caso de colapso das estruturas.
Arte detalha o cenário de risco em Minas Gerais
Na Barragem Serra Azul, da ArcelorMittal, são cerca de 37 mil pessoas vivendo no raio de 10 quilômetros. Outra vítima em potencial do eventual rompimento da estrutura é Fabiana Lima, de 36 anos. A profissional da área da educação vive a cerca de quatro quilômetros (em linha reta) da represa.
“A mineradora limitou o o a uma parte do terreno da minha família, uma área bem grande, de aproximadamente 1 mil metros. Hoje, eles pagam uma prestação mensal para os atingidos que moram na zona de autossalvamento (conhecida pela comunidade pela sigla ZAS). O mesmo vale para pessoas que vivem em sítios aqui na região”, diz.
Fabiana afirma que a vida dela, da sua família e dos vizinhos mudou completamente desde que a estrutura entrou no nível 3 da escala de risco, fato ocorrido em 2019, dias depois do colapso da barragem da Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho.
“O pessoal gostava muito de pescar e tomar banho no rio, mas hoje não podemos mais fazer isso. O pesque-pague que frequentávamos também fechou. É muito triste”, diz.
Segundo números do Termo de Acordo Complementar 1 (TAC1), firmado entre a ArcelorMittal, os atingidos e os ministérios públicos Estadual (MPMG) e Federal (MPF), 58 famílias foram realocadas provisoriamente em imóveis alugados pela empresa.
Dessas, 54 estão com mudanças para imóveis definitivos concluídas e quatro permanecem em imóveis alugados. Ao mesmo tempo, segundo a empresa, 1.012 famílias estavam cadastradas para o recebimento de auxílios financeiros mensais até o fim de 2024.
Outro lado
Em nota, a ArcelorMittal informou que a Barragem de Serra Azul "está desativada e não recebe rejeitos desde 2012". Segundo a empresa, "todos os indicadores de segurança permanecem inalterados desde o acionamento do Plano de Ação de Emergência de Barragens de Mineração (PAEBM), em fevereiro de 2019.
Estes indicadores, de leitura automatizada, são acompanhados por técnicos 24 horas por dia, sete dias por semana".
Em relação à descaracterização, a empresa informa que as obras do muro capaz de frear os rejeitos, em caso de colapso, "tem previsão de conclusão no terceiro trimestre de 2025". Já "o processo completo de descaracterização será concluído até 2032".
Memória
Em 8 de fevereiro de 2019, duas semanas após a tragédia de Brumadinho, sirenes soaram durante a madrugada para retirar moradores da zona rural de Itatiaiuçu de suas casas. Naquele dia, cerca de 60 habitantes foram evacuados pela Defesa Civil pelo risco de colapso da Barragem da Mina de Serra Azul.
Em caso de colapso, toneladas de detritos têm potencial de destruir casas e parte da BR-381 (Rodovia Fernão Dias), além de afetar a captação do reservatório de Rio Manso, da Copasa, o maior da Grande BH e responsável pelo abastecimento de 1,5 milhão de pessoas.