Médicos do Pronto-Socorro João XXIII, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte,
denunciam superlotação da unidade diante da demanda deixada pelo fechamento do bloco cirúrgico do Hospital Maria Amélia Lins (HMAL), que está em processo de terceirização do serviço e conversão em unidade exclusiva para cirurgias eletivas.
Antes de ser desativado, o HMAL funcionava como retaguarda do João XXIII e realizava cerca de 300 cirurgias por mês, muitas delas encaminhadas pelo pronto-socorro. Com o
fechamento do bloco, a expectativa era que os pacientes fossem redistribuídos entre outras unidades da rede. Na prática, porém, segundo profissionais ouvidos pelo
Estado de Minas, a maioria continuou na unidade pressionando ainda mais o João XXIII.
"O hospital está lotado, não consegue dar vazão à demanda de cirurgias. Quem chega com um caso urgente encontra uma fila gigante de pacientes internados esperando por operação", relata um médico da unidade, sob anonimato.
Sem salas de cirurgia suficientes para a alta demanda, apenas um quarto dos procedimentos, que antes eram realizados no HMAL, está sendo feito. “O hospital não comporta. Tentaram aumentar os giros das salas, mas isso não foi suficiente para absorver a demanda”, disse outra profissional à reportagem, que também preferiu não ser identificada.
Para evitar o cancelamento oficial das cirurgias, algumas são simplesmente deixadas de lado no dia agendado. "Avisam que só vão conseguir operar dois pacientes, e o resto fica sem atendimento", denuncia.
Além do déficit assistencial, médicos relatam um desarranjo na organização das cirurgias. A priorização dos casos urgentes foi comprometida, gerando um efeito dominó que coloca vidas em risco. "Cancelam uma cirurgia porque surgiu uma urgência, mas depois outra urgência é adiada porque já estão operando um caso eletivo”, conta.
Como o João XXIII é um hospital de portas abertas, pacientes graves continuam chegando. “No fim, o paciente que precisava ser operado com urgência acaba esperando, enquanto outros que tinham cirurgia marcada também não são atendidos", explica uma médica.
Versão do Governo
As declarações contradizem a versão oficial do governo, que afirma que a absorção da demanda pelo João XXIII foi bem-sucedida, sem prejuízos aos pacientes. Em coletiva de imprensa na terça-feira (1º/4), o secretário de Estado da Saúde, Fábio Baccheretti, garantiu que o
tempo de permanência no hospital caiu, e a taxa de mortalidade, também, sem detalhar números.
Nos bastidores, porém, profissionais da saúde ouvidos pela reportagem denunciam que houve manipulação dos números para sustentar a narrativa de que o serviço se mantém eficiente. Um dos médicos relatou que, antes de uma visita oficial do governo ao hospital, a unidade ou por uma espécie de "limpeza". “Até sexta-feira ada, o hospital estava abarrotado. No fim de semana, do nada, ficou vazio. Nunca vi isso. Corredores limpos, enfermarias vazias... Foi uma maquiada antes da visita oficial. Na segunda-feira, quem veio visitar, encontrou um cenário completamente diferente da realidade do dia a dia”, contou.
No entanto, a calmaria durou pouco. “Eles deram uma limpada no hospital para dar uma maquiada. Agora, com o fechamento do contrato, já voltou a lotar, está abarrotado de novo, e é a mesma situação”, conta.
A reportagem procurou o Governo de Minas e a Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig) para comentar o caso, mas não obteve resposta até o fechamento desta matéria.
Servidores do HMAL também relatam ainda pressões da Fhemig para que aceitem a transferência para o João XXIII, sob “ameaça velada” de realocação para cidades do interior. Após o anúncio da mudança, profissionais da saúde protestaram, denunciando a falta de diálogo e as dificuldades que a reorganização impôs à rotina da equipe.
Com o bloco cirúrgico fechado, a chegada de novos pacientes urgentes ao HMAL foi bloqueada no sistema. Nesta quinta-feira (3/4), o Estado de Minas esteve na unidade depois de denúncias de que os dois andares do bloco cirúrgico teriam sido trancados pela Fhemig. No local, apurou que a decisão partiu do coordenador da unidade como medida de proteção ao patrimônio público para evitar furtos, já que a área não tem vigilância.
Disputa na Justiça
O conselheiro Licurgo Mourão destacou que o contrato só pode ser assinado após análise do processo pela Corte de Contas. Segundo a liminar, a Fhemig foi intimada a apresentar documentos ao TCE sobre a terceirização, mas não o fez.
No mesmo dia, a ata de julgamento que designava o Consórcio Icismep para assumir a gestão do hospital foi divulgada pelo Governo de Minas. A concessão do hospital teria duração inicial de cinco anos, e, segundo a Fhemig, a nova gestão manterá a unidade operando ininterruptamente, inclusive aos fins de semana.
Na ação, o Ministério Público solicita que os 41 leitos do Maria Amélia sejam reativados em até dez dias e que o bloco cirúrgico volte a operar regularmente no prazo de 15 dias, com o retorno dos profissionais transferidos para o João XXIII. Em caso de descumprimento, o órgão pede multa diária de R$ 10 mil ao Estado e aos gestores responsáveis pela decisão.
Apesar das críticas e da decisão judicial, o governo segue defendendo a mudança. Em coletiva, Baccheretti argumentou que a nova gestão ampliará o número de cirurgias eletivas e evitará filas paradas, como a que ocorreu em janeiro, quando cirurgias ortopédicas precisaram ser suspensas por 15 dias na capital mineira devido à alta de acidentados.
"Temos mais de 30 mil pessoas aguardando cirurgia eletiva em Belo Horizonte. Com o novo modelo, vamos aumentar de 900 para 1.500 cirurgias mensais nos dois hospitais da região", afirmou. “Termos um hospital exclusivamente para cirurgias eletivas não vai permitir que essa fila pare”, disse.
Como deve funcionar a terceirização
A reestruturação do hospital faz parte do programa Opera Mais, lançado pelo governo estadual em 2021, com o objetivo de reduzir a fila de cirurgias eletivas no estado. O programa já disponibilizou mais de R$ 900 milhões para procedimentos cirúrgicos e, neste ano, prevê um investimento de R$ 376,8 milhões.
Com o novo modelo, o HMAL será voltado exclusivamente para cirurgias eletivas, desafogando, segundo o governo de Minas, hospitais de urgência e emergência como o João XXIII. A expectativa é que a unidade realize cerca de 500 cirurgias por mês, especialmente ortopédicas, já que essa é a maior demanda reprimida atualmente.
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Sobre os servidores, o secretário garantiu que ninguém será demitido e que todos serão realocados para o Hospital João XXIII, localizado a apenas 100 metros do Maria Amélia Lins. “Os profissionais da mesma carreira serão absorvidos no João XXIII. Precisamos deles: dos cirurgiões, enfermeiros e anestesistas”, assegurou Baccheretti em entrevista anterior publicada no Estado de Minas.
(Com informações de Melissa Souza)