O escritor que virou prefeito e promoveu igualdade racial nas escolas
Biografia conta como Graciliano Ramos, autor de 'Vidas Secas', comandou sua cidade adotiva e enfrentou a ira dos poderosos
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Siga no“Memórias do cárcere”, para quem o compreendesse, tinha o sabor das ilusões perdidas”, disse o escritor Ricardo Ramos (1929-1992), filho de Graciliano Ramos (1892-1953), sobre a obra máxima do autor alagoano. É uma autobiografia literária e humanista, póstuma e inacabada, que relata os 317 dias – entre 3 de março de 1936 e 13 de janeiro de 1937 – em que Graciliano esteve preso, sem qualquer acusação ou processo formal, nos porões da ditadura de Getúlio Vargas.
A grande relevância de “Memórias do cárcere” é um dos destaques de “Graciliano: retrato fragmentado – uma biografia”, lançada originalmente por Ricardo Ramos em 1992 – ano de sua morte e do centenário de nascimento do pai – e que acaba de ganhar nova edição pela editora Record.
A biografia é uma rica conversa, principalmente literária, entre pai e filho dentro de casa. Faz um perfil intimista do autor de “Memórias do cárcere” e “Vidas secas” e inclui ainda uma curiosíssima polêmica literária sobre o concurso em que Graciliano Ramos rejeitou o livro “Sagarana”, de ninguém menos do que o escritor mineiro João Guimarães Rosa (1908-1967). Ele preferiu “Maria Perigosa”, do escritor, pintor e ilustrador pernambucano Luís Jardim (1901-1987).
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É uma biografia diferente do gênero, porque não se prende ao perfil cronológico. Vai muito além dos sucessos literários. Vai pinçando fragmentos e agens da vida de Graciliano Ramos. Fala dos momentos mais amenos, como as feijoadas em casa com amigos intelectuais, a pelo tempo em que Graciliano foi prefeito de Palmeira dos Índios (AL) e diretor de Instrução Pública [secretário de Educação] de Alagoas, quando buscou inclusão racial e social nas escolas públicas.
Segue com a prisão que gerou “Memórias do cárcere”, os embates políticos com os correligionários comunistas, o lançamento de obras essenciais para a literatura brasileira – “Angústia”, “S. Bernardo” e “Vidas secas” – e culmina com a tristeza do suicídio de um filho e com o drama derradeiro causado pelo câncer no pulmão.
Já no prefácio da biografia, o escritor e crítico literário mineiro Silviano Santiago, hoje com 88 anos, lembra: “Ricardo Ramos constata que os milhares de leitores e os vários críticos grafitaram retratos de Graciliano Ramos a partir da leitura de sua obra literária, mas nenhum deles flagrou o escritor na convivência doméstica, experiência pela qual o filho ou.”
“Graciliano brincalhão, desatento, intempestivo. Quem sabe nem tanto, apenas refratado, habituei-me a transitar por tais recordações. E desisti, faz muito, de intentar um perfil. Ou não existe o retrato fragmentado, a colagem viva? Surgindo nas ressurreições da memória?”, diz Ricardo Ramos ao justificar o nome da biografia e a forma que adotou.
Lampião
De fragmento em fragmento, Ricardo Ramos vai apresentando o pai sob o seu olhar. Fala, desde logo, da surpresa e da revolta de Graciliano ao ver o pai, o fazendeiro Sebastião, dar dinheiro ao cangaceiro Lampião para não ter sua propriedade invadida. Ricardo conta: “Meu pai lembrava a discussão com meu avô, que arrazoava: tinha filhas e genros morando em fazendas, espalhadas pelo sertão, deixasse de pagar e não sobrava homem vivo, mulher não violentada.”
Para Graciliano, não tinha glamorização, Lampião não ava de um bandido assassino. “Bicho montado, sanguinário. Apresentemos o bandoleiro nordestino como é realmente, uma besta-fera”, disse Graciliano. O escritor, entretanto, reconhecia a projeção lendária de Lampião: “Lampião nasceu há muitos anos em todos os estados do Nordeste (…) De quando em quando, noticia-se a morte dele com espalhafato. Como se se noticiasse a morte da seca e da miséria. Ingenuidade.” Ricardo lembra que o banditismo está presente em “Vidas secas”, quando Fabiano, o protagonista, em certo momento, ao cruzar com um grupo de cangaceiros, tem o ímpeto de segui-los.
O prefeito
Ricardo relata na biografia também como Graciliano Ramos, nascido em Quadrangulo, virou prefeito de sua cidade adotiva, Palmeira dos Índios, ambas em Alagoas. Em 1927, o deputado Álvaro Paes sugeriu ao governador Costa Rego o nome de Graciliano para disputar a prefeitura. “Homem moço, letrado, simpático, rico”, Graciliano foi visto como “alheio aos interesses do município” pela oposição ao governador. Irritado com as críticas, Graciliano quebrou a própria resistência e se candidatou para enfrentar democratas e conservadores.
Ele, que já se aventurava como negociante por intermédio do pai e como jornalista na imprensa local, foi então eleito prefeito de Palmeira dos Índios. Um das atividades que chamou a atenção geral foram os seus relatórios oficiais de sua gestão muito bem escritos, que tiveram repercussão entre escritores e chegaram à então capital do país, Rio de Janeiro. Já indicavam o futuro grande escritor ainda inédito. O seu primeiro romance, “Caetés”, seria lançado em 1933.
Sua gestão como prefeito incomodou muita gente, pela busca de justiça social e pelo fato de ser crítico ao governo Vargas, que ainda não virara uma ditadura. Ricardo Ramos discorre: “Sua istração na prefeitura, independente e rigorosa, pisara os pés de muita gente: a desapropriação de terras para construção de estradas (desavenças, gritarias, ameaças), a severa cobrança de impostos (de repente os privilégios), aplicação das verbas públicas segundo suas prioridades (os interesses individuais ou de grupos contrariados.
Desgostoso com os rumos do país e com os desmandos de Getúlio Vargas, que tomou o poder em 1930, Graciliano renunciou ao cargo de prefeito, que exerceu entre janeiro de 1928 e abril de 1930. Ricardo diz que ele detestava Getúlio. Essa diferença foi ampliada quando o escritor foi preso pela ditadura em 1936.
Justiça social
Enquanto se iniciava na literatura, Graciliano Ramos foi nomeado diretor de Instrução Pública de Alagoas, em 1933, cargo equivalente hoje ao de secretário de Educação. Sua gestão que instituiu a merenda escolar – então novidade –, concurso obrigatório para professores e outras medidas de justiça social causaram desagrado. “A merenda lhe rendera um bate-boca desagradável com o comandante da guarnição militar que incluía meninos de grupo no desfile de 7 de setembro. 'Criança não é soldado. Eles só marcham se comerem antes e depois, se estiverem calçados e vestidos. Não vou deixar ninguém desmaiado pelo caminho”, protestou o então secretário Graciliano.
“Um secretário de Educação que amplia de maneira expressiva o número de alunos da rede escolar, que veste, calça e alimenta a meninada, que enfrenta o preconceito enchendo os grupos escolas de crianças negras”, relata Ricardo Ramos.
Ricardo lembra também uma declaração de Graciliano, que embora tenha usado termos considerados racistas hoje, defende a igualdade racial e aponta o desempenho entre estudantes: “Quatro dessas criaturinhas, beiçudas e retintas, obtiveram as melhores notas nos últimos exames. Que nos dirão os racistas, d. Irene?”. Ricardo explica: “A pergunta à professora era oportuna, 'os integralistas serravam de cima'”.
O filho de Graciliano faz referência ao movimento político nacionalista e de extrema direita que tentou tomar o poder no Brasil na década de 1930. Com temperamento “afirmativo, opinioso e irreverente”, como define Ricardo, Graciliano foi denunciado, detido e ameaçado de fuzilamento pelo general integralista Newton Cavalcanti, um caso que durou 24 horas.
Feijoada
Na biografia sobre o seu pai, Ricardo Ramos fala também das famosas feijoadas em casa, principalmente aos domingos, quando Graciliano recebia os amigos e pessoas mais próximas. “Aí o apartamento se enchia, pois não tão espaçoso, dos rostos habituais. (…) Contistas, poetas, romancistas. A maioria de presença regular em livro e suplemento, alguns bissextos. Todos mais para moços. (…) Ele gostava daquilo, ficava à vontade, falante. Contando histórias, discutindo política, dando opinião literária. O tom geral se abrandava: dizer o sério de modo trivial, se possível alegremente”, conta Ricardo.
Mas nem tudo era liberado nessas conversas. “Nesse clima exuberante, que a bebida incentivava, havia entretanto proibições. Não itia brincadeira com o Partido Comunista [ao qual Graciliano ainda era filiado], com escritor amigo ou não, as restrições desabridas se limitavam a Getúlio [Vargas] e sua corte, a José de Alencar, Coelho Neto, Humberto de Campos, Plínio Salgado, uns poucos mais. Quando alguém ia além do populismo e da direita, ou ava a fonteira da retórica desprezível, cortava rente: 'Se você pensa isso, escreva e assine'”, lembra Ricardo.
O filho do autor de “Vidas secas” cita também que Graciliano tinha o apelido de “Velho”: “Ali, com todos mais moços, ficava natural. Mas isso vinha de longe, desde Maceió. Dez anos mais velho do que José Lins do Rêgo, vinte mais do que Jorge Amado, quase tanto quanto Rachel de Queiroz e Aurélio Buarque, pouco mais, pouco menos, que Jorge de Lima e Valdemar Cavalcanti, Raul Lima e Afrânio Melo. Para todos eles, era o Velho. No entanto, estava com 50 anos.” Certo dia, Ricardo perguntou a Graciliano: “Você adora essa rapaziada, não é?”. Ele respondeu: “Sim, acho que sim. Eles ainda não sentiram o cabresto. É, eu gosto disso”.
“Monstros russos”
“Esses russos são uns monstros. Sim, a começar de Tolstói”, disse Graciliano, certa vez, a Ricardo, quando a conversa era sobre literatura. “Abria a conversa andor, assim desmedido. E logo a seguir, ainda, que não afeito aos entusiasmos, estava repetindo sua enorme iração por Tolstói: 'Guerra e paz' é o maior romance da literatura mundial, e não sei de novela melhor, nenhuma, que 'A morte de Ivan Ilich'”. O escritor citou ainda outros gigantes russos, como Nicolai Gogol, Anton Tchekhov e Maxim Górki. ava então a Dostoiévski, “uma enormidade”. Por causa dessas referências, Ricardo conta que teve uma “febre” e leu quase todos os autores russos.
“Às vésperas de morrer, disse publicamente quais julgava as suas influências: Dostoiévski, Tolstói, Balzac, Zola. E também o seu permanente entusiasmo pela literatura russa. (…) A uma pergunta sobre qual dos dois preferia, Tolstói ou Dostoiévski, respondeu: 'Tolstói. Mas Tolstói eu não considero apenas o maior dos russos: é o maior da humanidade'”, relata Ricardo.
Graciliano também irava muitos autores brasileiros, como Jorge Amado, José Lins do Rêgo, Marques Rebelo, Rachel de Queiroz, Machado de Assis. Mas um, entretanto, ele atacava. Certo dia, ele disse a Ricardo: “Hoje estou burro demais, acho que meu pai me fez lendo José de Alencar.”
Pijama
Ricardo Ramos cita outra lembrança curiosa do pai na intimidade de casa. “Cada vez mais lembro do meu pai a vê-lo. E o vejo de pijama. Sentado à mesa que ficava no seu quarto, perto da janela, escrevendo pela manhã, desde cedo até por volta das 11 horas. Há bastante claridade, posso distinguir a letra miúda e regular, que traça retas no papel. (…) Graciliano escrevia à mão, nunca batia à máquina, se escandalizava com as notícias iniciais de que havia escritores ditando para gravador. É possível que aquela oralização excessiva, um pecado a evitar, o fizesse aproximá-lo de oradores e conferencistas. Usava o termo 'discursos', que odiava como ato e representação. De preferência escreva a lápis, sem usar borracha, mas cortando palavras, frases ou trechos indecisos, imprecisos, insuficientes, para seguir ou sobrepor mais definitivo. Era difícil, à primeira vista, encontrar nexo naquele emaranhado.”
Já doente, sofrendo, diagnosticado com câncer na pleura, aos 62 anos, Graciliano chamou Ricardo e disse sobre a sua obra: “Tome conta, pode ter importância. Talvez algum dia os livros rendam alguma coisa. Seria bom para a sua mãe, para as meninas”. “Sim, claro, prometi, meio engasgado. Ele se levantou, apoiado à escrivaninha e lembrou-se: 'Ah, não esqueça. Quando isto acabar, agradeça a Drummond [poeta mineiro] e Schmidt [poeta e editor carioca] em meu nome. Escreva ou faça uma visita aos dois'. Então, me abraçou, mais demorado, e me beijou no rosto. Pela primeira vez, que eu lembre. E última.”
Filho escritor
Nascido em Palmeira dos Índios (AL), Ricardo Medeiros Ramos foi um escritor premiado, além de publicitário, professor de comunicação e jornalista. Escreveu romances e contos. Venceu três vezes o prêmio Jabuti, um dos mais importantes da literatura brasileira, com os livros “Os caminhantes de Santa Luzia” (1959), “Os desertos” (1961) e “Matar um homem” (1970). Entre os livros de contos, destaque para “Circuito fechado”, que reúne histórias com narrativa ousada. Ele morreu em 1992, ano em que “Graciliano: retrato fragmentado – uma biografia”, foi lançado. Seu filho Ricardo Ramos Filho também é escritor e acaba de lançar o primeiro romance, “Toda poeira da calçada”. Outro filho, Rogério Ramos (1955-2024) também era escritor.
A vida do autor de “Vidas secas” também é retratada em “O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos”, de Denis de Moraes, publicada em 1992 (José Olympio) e ampliada em 2012 (Boitempo).
“GRACILIANO: RETRATO FRAGMENTADO –UMA BIOGRAFIA”
• De Ricardo Ramos
• Editora Record
• 210 páginas
• R$ 79,90
Trecho do livro
“Com os filhos, [Graciliano] era extremamente liberal. Com as filhas, exatamente o avesso. Eu podia ficar semanas aparecendo em casa aos domingos que ele achava natural e até divertido. Minhas irmãs só podiam ter amigos: suspeitasse de algum interesse, cortava rente, cara fechada, intratável.
Nesse andor, uma noite voltando da festa que me fora bem favorável, participei a minha irmã Luiza: estava namorando. E disse o nome, afinal, confirmado. Ela ficou feliz, aquilo um fim de campanha que durara muito. Conhecida, acalentada, favorecida pelos amigos próximos. E dando certo. No dia seguinte, meu pai me esperava sério:
- Você está namorando com essa menina?
- Estou, sim.
- Preste atenção. Ela é boinha, não merece. Irmã de Raimundo, meu amigo. Amiga de suas irmãs. Filha de amiga de sua mãe. Não me faça besteira, por favor, não faça. Quis rir, não era o caso.
Reagi:
- Você pensa que sou doido?
- Não penso, tenho certeza. Meus filhos, todos eles, não valem nada.
Mas você [Ricardo] é o que presta menos.”