Resenha/ "Cantagalo"

"Cantagalo" evita maniqueísmo ao retratar dor e opressão sem simplificações

Fernanda Teixeira Ribeiro expõe as tensões raciais e familiares em um cafezal mineiro do pós-abolição, revelando os segredos e dores de uma elite em decadência

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Stefania Chiarelli - Especial para o EM

“Os pecados das boas famílias são todos iguais”. Pela boca da personagem Cantau Gama, Fernanda Teixeira Ribeiro revisita no romance “Cantagalo” a célebre frase de abertura de “Anna Karenina”. Em seu livro de estreia, ambientado na Minas Gerais do início do século 20, os delitos podem ser os mesmos, mas a toada é outra. Porque há sangue nas folhas de café.

Dominado pela família Lima, o cafezal Cantagalo está fincado no Alto Paranaíba e nas práticas da pós-abolição. É a viúva Praxedes quem faz o lugar prosperar depois de um ado de decadência no cultivo cafeeiro. Mãe de Agripina, Leopoldina e Tonica, ela comanda com mão de ferro coisas e pessoas - batiza as crianças dos empregados, maneja o livro das contas, tem olho em cada canto escuro da casa. O que nunca conseguiu controlar foram os destinos da genética. Ela tem um “crepúsculo no ventre”, imagem criada para expressar a realidade de uma mulher angustiada em saber de que cor nascerá sua descendência.

Há “defeitos” que precisam estar na penumbra. Filhas de pais diferentes, a prole carrega segredos difíceis de apagar, e muitos deles estão escritos na carne. Em uma, a pele avermelha sob o sol; já à outra é proibida exposição à luz extrema, para que o verdadeiro tom não apareça. Basta lembrar da polêmica tela "A redenção de Cam" (1895) do espanhol Modesto Brocos, que confirma o ideal de branqueamento da sociedade de então, em que a elite brasileira, apoiada em teorias eugenistas, buscava apagar os traços negros da população.

Com notável domínio do ritmo narrativo, a autora muitas vezes não detalha acontecimentos importantes; o enredo avança sem didatismos, em capítulos curtos cujos diálogos conferem agilidade à trama. “Cantagalo” tem alma de folhetim e fôlego contemporâneo; é nome de negócio e verbo encarnado na ave que carrega um feitiço lançado pela enigmática Pulidóra. Rinha de galo é concretude e metáfora aqui. São muitos os antagonismos, sobretudo no que se refere à posse da terra. Por ela se morre e se mata: “encharcado de sangue”, o solo faz crescer o ouro preto que gera fortunas e cria abismos entre as gentes dali. Nesse mundo rural de forte tradição patriarcal, de garimpo, gado e fazendas, vale o ditado “nome sem terra, nome sem brio”.

A linguagem de personagens como Praxedes surge impregnada de provérbios e máximas (“parente é cruz”), em cuja oralidade se revelam doses de moralismo e princípios encharcados de conservadorismo. Nos dizeres da proprietária naturaliza-se a exploração, e a luta de classes se resolve com sabedoria mais do que duvidosa: “Meu pai o barão dizia, de trabalho não se queixa, trabalho se agradece”.

Por isso se mostra tão relevante ar a perspectiva de personagens marcados por visões de mundo radicalmente diferentes, expediente que possibilita maior profundidade no tratamento das relações, a exemplo do fracassado Julião Bontempo, casado com Ambrosina, prima da dona do cafezal: “Gente rica não gosta do pobre deixando de ser pobre. Nem se for da família”. A presença de outras formas de pensar cria uma arena discursiva em que vozes distintas se contrapõem. É quando o pensamento de mulheres escravizadas, uma freira, descendências bastardas, homens abusadores e seminaristas sem vocação se faz ouvir.

Em meio a esse coro, Praxedes se destaca como personagem racista e cruel. Dentro do jogo de forças em que se insere, é também vítima, ligada ao cafezal por um motivo torpe, pois foi abusada na adolescência pelo pai, o barão Honório de Lima. Lucro e luxúria andam de mãos dadas na terrível agem em que é levada pelo barão para conhecer a plantação. Narrada com talento, a cena mostra o terror da menina de 15 anos no lombo do cavalo paterno e a consequente sujeição à figura dele nos anos seguintes. Praxedes se mortifica por acreditar ter facilitado de alguma forma os acontecimentos: “Fosse homem, não teria montado com o pai no Bagual. Em filho homem não se toca, papai, não me encoste ou não respondo por mim”. O tempo a, e ela principia a citar frases do seu algoz. Vista como propriedade pelo pai, a a replicar sua visão de mundo pautada na manutenção de privilégios. Apesar da infâmia cometida pelo barão, não questiona o empenho em manter a qualquer custo os bens dentro do círculo consanguíneo.

Para isso, é fundamental fechar portas e entreabrir algumas janelas (somente à noite, para que o ar fresco entre no casarão). Quase verdades se multiplicam nesse universo ambíguo, de barrigas disfarçadas sob vestidos, filhos bastardos e peles proibidas de ir ao sol. Na transmissão da riqueza, sangue indireto vale menos, importante lição a ser lembrada.

Às mulheres e às crianças, uma violência pouco disfarçada. Condenadas à clausura dos quartos de pensão ou ao internato, algumas jovens como Leopoldina concluem sem grande esforço que casamento rima com destino infeliz. Ou Ambrosina, que após anos de vida em comum decide picotar o vestido de noiva e nos retalhos do enxoval bordar outras histórias. Também Bertha, a freira-pesquisadora, dona da convicção de que estudo e vida intelectual só são possíveis para uma mulher que esteja fora do contrato aprisionante do matrimônio. Elas escrevem cartas, diários, bordam palavras nos tecidos, escavam o ado, pesquisam flores exóticas.

O destino é mais brutal com a linhagem de mulheres negras formada pelas personagens Tia Lírio, Pulidóra, Iamiana e Maria Felipa. Ao trazer para a narrativa não somente a história, mas o ponto de vista dessas figuras silenciadas historicamente, Ribeiro põem em cena subjetividades complexas, enriquecendo o romance com as nuances de vidas obrigadas a constantemente negociar suas identidades. Elas sofrem com a exploração do trabalho e a constante erotização de seus corpos; mas também carregam a sabedoria das mandingas e o talento para a cura. De modo complementar, Cantau Gama, descendente de pai juiz e mãe negra, desenha o problemático quadro da familia patriarcal mineira (e brasileira), em que a hipocrisia e os arranjos tortos proliferam: apesar da vantagem do pertencer a uma família tradicional, a jovem enfrenta as dores da bastardia. Seu nome ecoa o título do romance, em uma espécie de aceno para as quatro gerações de mulheres retratadas na história. Cantar de galo não é para todos, então talvez seja providencial sair por aí vestida como homem e escrever como um deles para conseguir impor sua vontade.

Há terríveis sofrimentos presentes em cada página do livro (como o fato de Maria Felipa, após uma doença, ter os dentes arrancados e nunca receber tratamento). Mas “Cantagalo” escapa de uma abordagem maniqueísta, não se limitando ao relato da dor dos personagens vilipendiados e a demonização de seus opressores. Para tanto, vale pensar na polissemia da palavra que intitula a narrativa: um dos significados da figura do galo no candomblé reside na capacidade de força e de renovação. A presença de saberes oriundos de culturas subalternizadas no processo colonial, como a dos povos da diáspora africana, sinaliza a capacidade de transformação dessas histórias.

“Cantagalo” desfere forte golpe na casa simbólica da família brasileira, e merecidamente ganhou o 9º Prêmio Revelação Literária da União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa (UCCLA) na categoria Novos Talentos, que reconhece escritores de países lusófonos com obras inéditas. Nesse lugar de úmidos beijos em bocas “de barro e de sarro” (impossível não lembrar do Drummond de “Os bens e o sangue”) existem coisas como a pulseira de marfim de desenho obceno que circula de pulso em pulso, objeto a sinalizar que algo pode se modificar ali, talvez um recomeço a partir de personagens femininas cuja língua afiada corte as raízes apodrecidas daquele chão. 

STEFANIA CHIARELLI é professora e pesquisadora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF) 

Trecho

“Quer o Cantagalo, Modesto, quer? Você não sabe nada de café, nem cavalo você monta, os lavradores vão rir de você, tomará lombo deles na colheita, terá sorte se for roubado só nas vendas, você nunca entrou no cafezal, sabe quantas gerações de cafeeiros eu vi plantar, florir, colher? Vinte e uma. Os cafeeiros falam comigo, Modesto, se abro a janela já sei se há praga, se há mão ruim no cuidado. Eu sei se o bicho-mineiro atacou porque muda o cheiro, muda o barulho do vento; folha de café também sangra, Modesto, às vezes chora. Então reze para eu viver muito, porque se eu acabo, o cafezal também; quem aqui nesta casa sabe mandar? Você não é. (…) Se quer ser barão, e o Cantagalo na frente, o  cafezal antes de tudo, a família. (…) Está perdoado, já estava perdoado antes mesmo do que fez, somos um único sangue.” 

Minha vida de leitora

Livros brasileiros que marcaram Fernanda Teixeira Ribeiro

“Ana Terra” e demais volumes de “O tempo e o vento”, de Erico Verissimo

“Foi um dos primeiros romances que tenho memória de ter lido. Creio que me marcou pela nitidez do cenário, a família isolada no meio do mato, com suas relações complexas. E, claro, pela personagem. Ana Terra se molda ao longo do livro em resposta ao que vai acontecendo e, principalmente, desenvolve um raio de ação nesse mundo hostil, dentro das possibilidades que ela tem. Releio de tempos em tempos.”

“Minha vida de menina”, de Helena Morley

“O livro é em formato de diário, e sua primeira versão foi, em teoria, escrita quando Morley (pseudônimo da mineira Alice Brant) era uma adolescente, na Diamantina do final do século 19. As efervescências do pós-abolição, da transição para a República, me interessam muito, e surgem de forma orgânica nas descrições da chácara da avó, das festas religiosas, dos parentes e das figuras públicas da cidade.”

“Tenda dos milagres”, de Jorge Amado

“Elejo o ‘Tenda’entre a obra completa do Jorge Amado, autor muito presente na construção
do meu gosto por “romanções”. Acho que me encantei com a Bahia que o Amado distinguiu/inventou, a conjugação entre profano e sagrado, o protagonista Pedro Arcanjo, bedel de universidade que teoriza sobre a formação social e racial do Brasil, em diálogo nítido com Gilberto Freyre e contraposição a ideias eugenistas em voga no início do século 20.”


“Campo geral”, de Guimarães Rosa

“É um livro precioso sobre infância. Fala de amor de irmãos e de contato precoce com a doença, a mentira, o adultério, o suicídio, em um ambiente ao mesmo tempo hostil, bonito e místico, que é o ‘Mutum’ do Guimarães Rosa. A gente vê o Miguilim sofrer, aprender, crescer e entende que somos a infância, mas que também é possível ser apesar dela. Melhor final de livro que já li.”

 “Poemas dos becos de Goiás e estórias mais”, de Cora Coralina

“A Cora Coralina tem um modo de escrever que faz você saber nitidamente quando é ela. Acho que esse jeito de contar poemas-histórias me marcou desde o ‘Prato Azul Pombinho’ e ei a lê-la e reler com bastante constância.”

 “A falência”, de Júlia Lopes de Almeida

“Li esse livro apenas recentemente e senti muita pena por não ter lido antes. A dica para ler o livro veio da Ana Lima Cecílio (curadora da Flip), depois que lancei o meu, por causa de algumas similaridades: a economia do café em crise, relações familiares e a transição século 19-20. A Júlia Lopes de Almeida tem uma escrita cheia de sagacidade. Gosto de como ela trata de adultério e de decadência moral. Merece muito ser lida.”

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“Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves

“Meu romance histórico preferido, de uma contemporânea e também mineira, Ana Maria Gonçalves. Gosto do enredo (é o tipo de livro que se lê com coração na boca) e da filosofia presente no modo de ver e de viver da protagonista Kehinde. Surpreende pela quantidade de pesquisa que sustenta o livro.”

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