O dia em que Jorge Armado foi jogado na fogueira
Militares a mando de Getúlio Vargas queimaram mais de mil livros do escritor baiano e de outros autores considerados comunistas
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Siga noEm 19 de novembro de 1937, nove dias após Getúlio Vargas dar o golpe do Estado Novo e às vésperas da Segunda Guerra Mndial, 1.694 livros – a maioria do escritor baiano Jorge Amado – foram incinerados em frente à Escola de Aprendizes Marinheiros, em Salvador. O documento que oficializa a queima de obras de “simpatizantes do credo comunista” é reproduzido no livro “Narrador do Brasil: Jorge Amado, leitor de seu tempo e de seu país”, do professor Eduardo de Assis Duarte, fundador e pesquisador da Comissão Editorial do literafro - portal da literatura afro-brasileira, da UFMG.
Foram queimados nada menos do que 808 exemplares de “Capitães da areia”, livro “perseguido e censurado no momento do seu lançamento”, conta Assis Duarte. Além dele, foram jogados no fogo da intolerância 267 exemplares de “Jubiabá”, 223 de “Mar morto”, 214 de “O país do carnaval”, 93 de “Suor”, “89” de “Cacau”, todos de Jorge Amado. E ainda livros do escritor paraibano José Lins do Rêgo, como o clássico “Menino de engenho”, e obras teóricas.
A ditadura Vargas flertava com o nazifascismo. Assis Duarte lembra: “No Brasil, o esforço de captação do ministro [da Educação, Gustavo] Capanema e de toda uma rede de instituições que incluía o DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda – levou muitos deles para uma arte celebradora da Pátria, de Deus e da Família, além de inclinada à apropriação folclorizante de nossa diferença cultural.”
Jorge Amado havia sido detido em 6 de novembro de 1937, quatro dias antes da decretação do Estado Novo. E foi na prisão que tomou conhecimento da destruição de seus livros. A prisão tinha lá sua motivação. “Ao abordar o problema do menor abandonado, o romancista insiste na linha da provocação política, na qual vai mantendo a feição entre realista e idealizada com que trata os desvalidos”, explica Assis Duarte sobre o “romance proletário” “Capitães da areia”. A ditadura Vargas não queria saber de denúncia sobre menores abandonados.
Jorge Amado também teve conhecimento de livros seus queimados em Buenos Aires, a mando do coronel Juan Domingo Perón, que ainda não havia assumido o governo da Argentina. Assis Duarte conta que o escritor comentou esse novo ato de intolerância na crônica “As fogueiras de livros”, no jornal baiano O Imparcial, em abril de 1944. Ele descreve que estava em “companhia” de John Steinbeck, John dos os e de outros escritores no ato bárbaro na Argentina que queimou 80 mil livros.
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Amado escreveu a crônica com indignação e ironia: “É claro que me sinto sumamente honrado pela companhia e por ter merecido dos fascistas argentinos tal consideração: a fogueira em praça pública. Nos países dominados pelos fascistas, voltamos sempre à Idade Média. O fascismo é inimigo do progresso e, da mesma maneira, como os sábios eram queimados pelos medievais, são hoje os livros postos nas fogueiras pelos fascistas. Imagino que no lugar dos livros, gostariam eles de ter os autores amarrados a postes, besuntados de breu como nos tempos de antigamente. Oitenta mil livros foram queimados em Buenos Aires, a mando do coronel Perón. Entre eles, segundo os telegramas, estavam livros meus. o a ser um autor de livros queimados internacionalmente e sinto-me vaidoso.”
Entrevista/ Eduardo de Assis Duarte
Fundador da comissão editoriaL DO LITERAFRO - PORTAL DA LITERATURA AFRO-BRASILEIRA
“Amado sempre se posicionou pela liberdade e pelo respeito mútuo”
Por que escrever “Narrador do Brasil: Jorge Amado, leitor de seu tempo e de seu país” mais de 20 anos após a morte do escritor?
Jorge Amado afirmou certa vez que, após sua morte, aria por 20 anos de ostracismo. Mas se enganou redondamente. O que vem ocorrendo desde 2001 é justamente o contrário: mais de 20 estudos monográficos; uma volumosa biografia, fruto de 10 anos de pesquisa da autora Josélia Aguiar; e centenas de artigos e capítulos de livros coletivos. Creio haver hoje todo um despertar da crítica em relação a sua obra. Em ‘Narrador do Brasil’ procuro retomar meu “Jorge Amado: romance em tempo de utopia’ (1996) e ir além, com uma proposta mais abrangente e inovadora frente à recepção crítica produzida anteriormente.
(…) Trata-se apenas de mais uma prova de que sou um romancista limitado e repetitivo, conforme opinião corrente e expressa pelos nobres senhores da crítica nacional. Opinião dita e repetida, aqui a transcrevo para com ela concordar (…)”. A ironia de Jorge Amado na apresentação do seu último romance, “A descoberta da América pelos turcos” (1992), revela uma mágoa? Afinal, em linhas gerais, a má vontade da crítica com o escritor baiano seria devido à falta de densidade psicológica e de refinamento de linguagem enxuta (diferentemente de Graciliano Ramos, por exemplo) e ao tom folhetinesco, popularesco e de cordel e ao misticismo de suas personagens? E por colocar o povo como protagonista?
Creio que sim, um pouco de cada uma destas razões (ou preconceitos). A pergunta já traz em si a resposta. Quando defendi minha tese sobre os romances do ‘tempo da utopia’ desabafei: “a academia via de regra só celebra aqueles livros que só ela lê. Para o que o leitor comum lê, ela vira as costas.”
As adaptações estereotipadas e sexualizadas de personagens de Jorge Amado para TV e cinema, como as suas quatro principais protagonistas femininas (Gabriela, Dona Flor, Tereza Batista e Tieta) na pele de atrizes consagradas, aliadas a falsos clichês como preguiça e democracia racial, contribuíram para abafar as conquistas femininas externadas pelo escritor e alimentar o preconceito da crítica especializada contra a sua obra?
Essa é uma questão que procuro trabalhar no livro, com todo um segmento dedicado a estas quatro heroínas. Veja bem: Gabriela surge em 1958, dez anos antes da explosão feminista no Ocidente, materializada na “revolução de costumes” propiciada pelos anticoncepcionais e exposta ao mundo nas “barricadas do prazer” exibidas durante o movimento estudantil de 1968 (!) em Paris. Gabriela pratica o receituário libertário “meu corpo, minhas regras” muito antes desse preceito feminista se impor. Quanto às adaptações midiáticas com todos os exageros e clichês comerciais, é o preço que o autor paga por ter seus escritos adaptados. Tal como a tradução, toda adaptação tem sua carga de traição. E com certeza, essa sexualização exagerada contribuiu para deturpar o perfil libertário das personagens.
Com o olhar distante no tempo, não é preciso considerar, além da utopia socialista, que havia nas décadas de 1920/1930/1940 e praticamente na metade da década de 1950 alienação ou desconhecimento sobre o que acontecia dentro da URSS? As atrocidades cometidas por Stálin só seriam conhecidas no Ocidente com a morte dele, em 1953. Nesse sentido, poderíamos dizer que não houve uma contradição de Jorge Amado e outros intelectuais de esquerda ao combater o nazifascismo e defender o comunismo, enquanto, ingenuamente, acreditavam em justiça social e democracia na URSS?
Com certeza. A barbárie nazista era proclamada aos quatro cantos pelo próprio regime, daí o impacto da volumosa diáspora judaica rumo às Américas. Já a “ditadura do proletariado” comunista ganha prestígio sobretudo durante a guerra, em que a participação russa foi fundamental para a derrota do nazismo. E tal fato ofusca a repressão interna, só mais tarde veiculada. O próprio Amado menciona isto em suas memórias e no depoimento que me concedeu em 1988, transcrito parcialmente em meu primeiro livro. Somente a partir da morte de Stalin seus crimes ganharam as manchetes e provocaram a debandada de militantes ilustres como Picasso, Sartre e o próprio Amado.
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“Comunista”, “anarquista”, feminista”, negritudinista”, “utopista” são termos que definem Jorge Amado e suas distintas fases, como o senhor aponta em “Narrador do Brasil”. Considerando as narrativas do escritor que tratam de injustiça social e desigualdade, poderíamos resumir todos esses termos numa só palavra: “humanista”?
Sem dúvida. Amado sempre se posicionou pela liberdade e pelo respeito mútuo. Tanto que seu único projeto como deputado federal do PCB na Constituinte de 1946 foi o que estabeleceu a liberdade religiosa como cláusula pétrea de nossa Constituição. No livro, procuro demonstrar como esse impulso libertário abriga tanto a luta contra a opressão socioeconômica, quanto a opressão de gênero e a discriminação racial. E Antônio Balduíno, protagonista de “Jubiabá”, publicado em 1935, quando o autor tinha apenas 23 anos, está aí para comprovar, pois figura como o primeiro herói negro do romance brasileiro. Amado já era militante “interseccional” muito antes do conceito surgir a partir do feminismo negro estadunidense.
Diante dos aspectos analisados em “Narrador do Brasil”, com base em classe, gênero e etnicidade durante a trajetória literária de seis décadas de Jorge Amado, qual é a sua obra preferida dele?
Essa é a pergunta mais difícil. Cada um dos romances me impactou e, também, a determinado segmento do público leitor: “Cacau” por denunciar a “nova escravidão” vigente no campo; “Jubiabá” pelo protagonismo negro e operário; “Capitães da areia” por expor o tema tabu do menor abandonado; “Seara vermelha” por dramatizar a via crucis dos flagelados pela seca e a urgência da reforma agrária; “Gabriela” e “Dona Flor” por exporem pedagogicamente a presença da nova mulher, dona de seu destino... Mas creio que “Tenda dos milagres” é de todos o que mais aprecio, pela defesa que faz da superação do sectarismo religioso – “meu materialismo não me limita”, repete sempre o autor – e pela condenação da discriminação racial.