Rubem Fonseca, 100 anos: mais de 2 mil páginas de sangue, suor e sexo
Caixa com todos os contos e duas histórias inéditas reafirma a destreza do autor de 'O cobrador' para fazer da brutalidade do cotidiano uma grande arte
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Especial para o EM
Não houve uma única vez em que a notícia de novo livro não causasse euforia. Se fossem histórias curtas, então nem se fala: era correr em disparada para a livraria mais próxima, o coração a mil. E a chuva caía dentro da imaginação, sem dó nem piedade. A amarração de todos os contos em caixa com três volumes, anúncio do centenário de nascimento, convoca a atenção para o autor que mudou os rumos da literatura brasileira a partir dos anos 1960 e, mais importante, nos olhou por dentro sem pudor e exibiu um país de atrocidades. É sempre hora de ler Rubem Fonseca (1925-2020), que completaria cem anos neste domingo (11/5).
Além de 17 livros de contos inéditos, houve antes uma seleção, feita pelo autor, de histórias dos três primeiros lançamentos – “O homem de fevereiro ou março” (1973) –, a antologia “Contos reunidos” (1994) e “64 contos de Rubem Fonseca” (2004). Agora, “Todos os contos + 2” inclui, como pressupõe o título, dois relatos escritos em 1948 e ainda oferece prefácios de especialistas na obra e trechos da fortuna crítica publicada na imprensa. Os inéditos encontrados pela família – “Natal” e “Arinda” – são apenas curiosidade bibliográfica, um deles publicado com deslizes de revisão (artigo no lugar de conjunção, vírgulas mal colocadas, “lages” de pedra). O que importa pra valer é reencontrar o mestre em seu habitat artificial.
Nesse lugar de alucinação, dá vontade de gritar para todo mundo ouvir: venham ver o que esse escritor é capaz de provocar. O texto exala prazer desatinado, mexe dentro do estômago, nas cavidades do coração, nos neurônios, nas vias sexuais todas, um troço de perturbar e enlevar. Macacos nos mordam. A gente lê Rubem Fonseca para encontrar o pior e o melhor, em busca de uma compreensão sem artimanhas de lugares demarcados, jamais pisando em ovos sensíveis, encarando o “crime do texto”, para lembrar feliz expressão-conceito proposto pela professora e ensaísta Vera Lúcia Follain de Figueiredo, uma das melhores leitoras da prosa fonsequiana.
É preciso ter em mente que a literatura aqui não padece de corretas intenções. Não pretende entregar manual de boas maneiras para uso contemporâneo. Há um “aprendizado”, por suposto. Mas ele vem enviesado, atravessado por violência, uma agressão ofertada pela palavra direta, crua, sincera. O cobrador cobra, a prostituta dá, o bandido rouba, o rico enriquece, o matador mata, o mendigo pede, a amante trai, o andarilho caminha, o nome nomeia. A repetição e os extremos são importantes para entender esse mundo. Do miserável ao milionário, apenas a palavra literária é capaz de convergir para o mal – e, talvez, o bem.
primeira pessoa narrativa se sobressai porque, afinal, “somos prisioneiros de nós mesmos. Nunca se esqueça disso, e de que não há fuga possível”, conforme a epígrafe que deu início a tudo em 1963, com “Os prisioneiros”. Estranhamente, a nova coletânea eliminou o crédito do filósofo chinês Lao Tse e seu “Tao Te Ching” (600 a.C), fazendo parecer que a frase é do próprio Rubem Fonseca. Fato é que esse eu atirado sobre o leitor constitui desde sempre marca dos relatos que se esparramaram ao longo de 55 anos de publicação (até 2018). É bom salientar, contudo, que nunca houve contrato de autoficção na obra do autor mineiro (de nascimento, em Juiz de Fora, em 11 de maio de 1925) e carioca por biografia. Temos observação, imaginação e muita experiência derivada de leitura e de cinema.
Dos contos clássicos, como os que dão título a obras também incontornáveis (“Lúcia McCartney”, “Feliz Ano Novo”, “O cobrador”), até as histórias publicadas na fase final da vida, com o autor já na casa dos 80 anos, raramente os textos se permitem alguma condescendência. A literatura rasga o verbo para nos situar numa sociedade urbana ainda bastante animalesca. Na apresentação especial que embala o box com os três volumes, Silviano Santiago é certeiro ao frisar essa barbárie permanente e as ações dramáticas (“curtas e fatais”) de contos “que optam pela análise do comportamento humano em detrimento da navegação cordial pela hipocrisia reinante”.
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O ser humano está por inteiro nestas páginas. Sendo assim, a leitura se faz no trágico cotidiano vivo e presente na agilidade de cada frase, na vibração intensa de todo e qualquer diálogo. Acontece também nesse limiar de comicidade que surge na existência literária de uma realidade quase surreal de tão inacreditável à primeira vista e que a destreza narrativa do autor vai impondo com naturalidade. A gente engole em seco ou finge uma gargalhada de nervoso. Acostuma-se, vira vício, pede mais, tira amplo prazer, reconhece o igual e o diferente com a nitidez de uma imensa tela cinematográfica.
E literatura não nos serve mesmo para isso? Para mostrar o que ninguém quer exibir, para trazer à tona o que todos pretendem esconder. A agem das páginas escritas por Rubem Fonseca provoca essa experiência da leitura sem igual. Não por menos encantou leitores ditos comuns e angariou elogios de grande parte da crítica literária. Porque soube dosar charme enciclopédico e fugir de certa chatice experimental. Conversou com o público e não exagerou na inovação de linguagem. Sim, soou redundante, quase cansado, nos últimos livros, mas a comparação dentro da própria obra se mostra injusta. O mais importante: continuou a escrever e publicar, com energia juvenil, o que o terceiro volume agora lançado comprova.
Ao lado de Dalton Trevisan (1925-2024), também comemorando centenário, forma dupla de ataque imbatível, longeva e próspera. Os dois deram à literatura brasileira ótimos traçados para o tratamento sobretudo da violência e do amor. Elaboraram a luta de classes e a guerra conjugal que a sociedade e a cultura brasileira travam em suas cidades habitadas por desesperos individuais e desgraças coletivas. Para constatar esse legado, basta ler qualquer conto de Fonseca, dos primeiríssimos que confrontam decadentes amantes estrangeiras com o país do carnaval e da porrada, numa alegoria para o renascimento da nossa literatura, ou outros mais recentes, que examinam em microscópio as secreções do corpo humano à procura da mais penetrante intimidade.
Em Rubem Fonseca, mesmo personagens brutos podem ser leitores. Amam e leem, não necessariamente nessa ordem. Há um recado em cada recanto de parágrafo sobre as empolgantes possibilidades abertas pelo universo literário, inclusive para potenciais escritores, o que explica ele estar na lista de influência de muitos dos que se formaram em particular nos anos 1960 e 1970. Entretanto, para entrar nos contos, é preciso alguma coragem. Não a da cronologia hipotética que levaríamos na leitura desta vasta obra agora reagrupada, mas da ousadia própria ao desejo de perceber as limitações da consciência de qualquer identidade unívoca.
Assim, encarar estas histórias curtas é estar disposto a se debruçar sobre as asperezas humanas. A violência explícita das armas, reconfigurada nos textos, eia pelas ruas de um Rio de Janeiro que se replica por outras cidades brasileiras. A agressão das palavras proferidas a dois, dentro do apartamento apertado ou no hall da mansão imensa, pulsa entre vírgulas estrategicamente compostas (uma informalidade bem calculada). Nesse jogo contemporâneo de empurra-empurra, entre o eu-leitor e os outros, a literatura aponta soluções éticas e morais, nunca prontas para o consumo óbvio.
Porque ler Rubem Fonseca, a qualquer tempo, é lambuzar o corpo na lama da alma e ter um regozijo múltiplo como recompensa para delicioso crime.
Sérgio de Sá é doutor em Estudos Literários pela UFMG, professor associado na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília e autor de “A reinvenção do escritor: literatura e mass media” (Editora UFMG) e “Bernardo Sayão: caminhos, afetos, cidades" (Ed. do Autor).
“O extraordinário autor não mede ação, ousadia e drama na composição dos textos que optam pela análise do comportamento humano em detrimento da navegação cordial pela hipocrisia reinante. A vida como ela é, para lembrar o cronista Nelson Rodrigues, se estatela em frases na tela da página em branco, como se estivéssemos diante de quadros que não dispensam as manchas de tom rascante e o colorido brilhante.”
Violência e paixão
Trechos de contos de Rubem Fonseca
“Havia uns trinta anos que eu não chorava; é uma coisa estranha que preciso contar em detalhes. Após algum tempo os olhos se fecham; você sente as lágrimas molhando o seu rosto e uma sensação de alívio como se você fosse um homem envenenado e uma veia se abrisse e lentamente pusesse para fora todo o sangue ruim, fazendo-o sentir-se melhor a cada gota que saísse – mais leve, mais bom, mais puro, mais digno, mais feliz na sua automisericórdia.”
(“Relatório de Carlos”, de “A coleira do cão”)
“Deitei-me na cama com vontade de morrer, sim, sim, como disse aquele russo, a vida me ensinara a pensar, mas pensar não me ensinara a viver, e então a campainha tocou e entrou um homem calvo, barrocamente vestido, lenço vermelho no bolso, anel de rubi, gravata dourada com um alfinete de pérola, camisa colorida e terno de listas, que se apresentou como detetive Jacó e me pediu que escrevesse o nome de Lígia por extenso num papel, e eu escrevi e ele foi embora e voltei a deitar na cama, triste e com fome, uma fome tão forte que me fez levantar e ir para o bar, onde bebi várias garrafas de cerveja, o que aliviou a minha dor.”
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(“Agruras de um jovem escritor”,de “Feliz ano novo”)
“Morava Jonas numa casa de quatro andares velha e suja. Parecia um navio, tantas eram as pessoas que viviam em seus quartos imundos e superpovoados. A ninguém Jonas contava, evidentemente, as coisas que imaginava. Consideravam-no um homem esquisito que vivia lendo. As crianças gostavam dele, pois costumava afagá-las e dar-lhes balas ordinárias de hortelã e tinta verde.
Naquela noite Jonas trabalhava na história. Fumando, olhos fechados, imaginava os diálogos, os conflitos, os caracteres das personagens, Carolo, cruel, astuto e sórdido, o incomodava com seu desejo intenso por Arinda. Fora imprudência levar a história àquele ponto: Arinda acabara se enredando nas insidiosas manobras do inescrupuloso Carolo.”
(De “Arinda”, um dos contos inéditos)