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Elas estiveram lá

Zuzu Angel e Eunice Paiva: lutas ligadas pelo horror da ditadura no Brasil

Luta de estilista mineira após sumiço do filho, assassinado nos porões da ditadura, une sua trajetória à da protagonista do livro e filme "Ainda estou aqui"

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A luta para tentar descobrir o paradeiro de uma pessoa próxima perseguida pela ditadura militar brasileira, tal como a de Eunice Paiva, personagem vivida pela atriz Fernanda Torres em “Ainda estou aqui”, ganhador do Oscar 2025 de Melhor Filme Internacional, também foi enfrentada por uma mineira: a estilista Zuzu Angel, natural de Curvelo, na região Central do estado – cidade que prepara uma homenagem à sua trajetória.


Enquanto Eunice Paiva dedicou parte de sua vida a esclarecer o destino do marido, Rubens Paiva, preso e morto durante o período sombrio da repressão, Zuzu, cujo nome de certidão é Zuleika Angel Jones (1921-1976), empregou suas forças na batalha para encontrar o filho, Stuart Edgard Angel Jones, que desapareceu e foi assassinado, em maio de 1971, aos 25 anos, pelos órgãos de repressão no auge do regime ditatorial.

 


Apesar da luta, Zuzu morreu sem respostas sobre o filho: sofreu um suposto acidente de carro, em 14 de abril de 1976, na saída do túnel Dois Irmãos, em São Conrado, no Rio de Janeiro. Em 1998, o regime militar foi apontado como responsável pela morte da estilista, após trabalho da Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, por iniciativa de um mineiro, o então deputado federal Nilmário Miranda, atual assessor especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.


A família de Zuzu Angel se mudou de Curvelo para Belo Horizonte quando ela ainda era criança. Depois, ela se transferiu para o Rio de Janeiro, mas continua sendo irada em sua terra natal, tratada como filha ilustre pela fama na alta-costura e, sobretudo, pela coragem em desafiar a ditadura em plenos “anos de chumbo”.


Assim como Eunice Paiva, a estilista mineira teve sua história documentada em filme, que levou o seu nome. Na produção, ela foi interpretada pela atriz Patrícia Pilar. Como reconhecimento dos conterrâneos ao seu legado, está sendo preparada uma homenagem especial para a estilista em Curvelo. Será aberto no município, no próximo 25 de abril, o evento “Zuzu Angel – Olhares de Liberdade”. A atividade será na Praça Central do Brasil, no Centro da cidade, em local aberto, com o gratuito.


No coração e nas mentes de Curvelo


“O evento vai apresentar a trajetória da revolucionária estilista Zuzu Angel. Percebo que ela continua a viver no coração e na memória dos curvelanos”, afirma o escritor e historiador Newton Vieira, da cidade da região Central do estado. Também um dos organizadores da homenagem, ele explica que o evento será aberto com um desfile com réplicas de peças criadas por Zuzu, incluindo roupas usadas no filme sobre a personagem, dirigido pelo cineasta Sérgio Rezende. No desfile, também serão exibidos óculos que trarão estampas com a da estilista.

No evento que contará com a presença da jornalista Hildegard Angel, filha da estilista, também serão prestadas homenagens a mulheres da cidade que se destacam em diferentes segmentos de atuação. Após o desfile, entre os dias 28 e 30 de abril, acervo digital sobre a trajetória de Zuzu Angel será exibido em painéis de LED, em espaço anexo à Secretaria Municipal de Cultura, também na Praça Central do Brasil. Na exposição haverá fotos de momentos marcantes da luta da estilista, incluindo registros do emblemático “desfile-protesto” que ela realizou em Nova York, em 1971.


“Considerada a mãe da moda brasileira, Zuzu Angel nunca perdeu o vínculo com a terra natal. E a cidade, em momento algum, deixou de reconhecer a sua importância histórica. Ela, por várias vezes, declarou que preferia sair nos jornais de Minas e de Curvelo a sair no 'New York Times'”, afirma Newton Vieira.


O historiador e escritor também relata que, quando Zuzu Angel iniciou sua verdadeira peregrinação à procura do corpo do filho Stuart, ela contou com a solidariedade de conterrâneos. Como exemplo, ele cita os discursos inflamados do ex-deputado federal Dalton Canabrava (1924/2011) em apoio à estilista. Ressalta que Canabrava, mais de uma vez, entrou na lista dos parlamentares que seriam cassados por se opor à ditadura e “por muito pouco” não perdeu o mandato.


“No auge da carreira, Zuzu encomendava trabalhos de bordadeiras em Curvelo. Queria as origens por perto. No emblemático desfile-protesto de 1971, em Nova York, Zuzu usou estampa com um céu de andorinhas, inspirada no céu, às vezes rubro, de Curvelo”, descreve Newton Vieira.


“Minha mãe foi uma Tiradentes de saias”

O divisor de águas na vida de Zuzu Angel ocorreu em maio de 1971, com o desaparecimento do filho Stuart Edgard Angel Jones, então, com 25 anos, assassinado pelo regime militar. O rapaz, que era estudante de economia, caiu na clandestinidade e integrou o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) antes de ser sequestrado e morto pela máquina da repressão.


“Minha mãe foi uma Tiradentes de saias, e Minas deve se orgulhar dela, pois foi a única a levantar o queixo e apontar o dedo, naqueles tempos de medo congelante do (então presidente) Garrastazu Médici (governo 1969-1974), em que todos caminhavam olhando para o chão. Ela intimidava os poderosos. Isso foi notável. Meu irmão não levou a vida de brincadeira, nunca foi festivo, era sério. Era um legítimo idealista resistente. Aos 18 anos, já dizia: 'Vamos salvar o Brasil'”, testemunha a jornalista Hildegard Angel,


Em 1971, Zuzu promoveu o “primeiro e único” desfile-protesto de que se tem notícia, realizado no consulado brasileiro em Nova York. Desde o Ato Institucional nº 5 (AI-5), datado de 13 de dezembro de 1968, houve um aumento na censura e na repressão a qualquer forma de crítica ao regime brasileiro. Mas, no desfile, modelos usaram fitas pretas de luxo nos vestidos. Ao lado dos bordados costumeiros nas roupas, havia referências como andorinhas pretas, sol quadrado, canhões atirando e soldados.


Da primeira-dama a estrelas de Hollywood


Na via crucis que encarou em busca do filho desaparecido, Zuzu costurou para dona Iolanda Costa e Silva (1910-1991), viúva do ex-presidente Arthur da Costa e Silva (1899-1969), proximidade que acabou não ajudando em sua busca. Então, ou a mimeografar dossiês contendo denúncias sobre o assassinato do filho e entregá-los a atrizes internacionais, como Kim Novak, Joan Crawford e Liza Minnelli, além de encaminhá-los ao senador norte-americano Edward Kennedy.


Em 1976, furou o bloqueio da segurança do então secretário de Estado dos Estados Unidos, Henry Kissinger, em visita ao Brasil, e lhe entregou nova documentação sobre o desaparecimento do filho, que também era cidadão norte-americano. “Minha mãe nunca perdoou. Não se conformou com a morte de Stuart. Fez da perda uma bandeira, não baixou a guarda nem abaixou a cabeça”, afirma Hildegard Angel. “Meu irmão nunca entregou ninguém, era um ideológico. Minha mãe sabia de tudo, claro, e sempre foi solidária ao filho”, completou a jornalista.

Integrantes da Comissão Nacional da Verdade reunidos no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, falam das investigações sobre o desaparecimento de Stuart (ao fundo)
Integrantes da Comissão Nacional da Verdade reunidos no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, falam das investigações sobre o desaparecimento de Stuart (ao fundo) Alessandro Costa/Agência O Dia/Estadão Conteúdo - 9/6/2014


Estudante, atleta, revolucionário

Stuart Angel Jones, o filho de Zuzu desaparecido e morto em 1971, aos 25 anos, vítima da ditadura brasileira, além de estudante de economia, integrava a equipe de remo do Flamengo. Após aderir ao Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8), foi acusado pelo regime militar de fazer parte da luta armada e se envolver no sequestro do embaixador norte-americano no Brasil Charles Burke Elbrick, em 1969. É o que apontam registros da Comissão Nacional da Verdade (CNV) nos arquivos “Memórias da ditadura”, do Instituto Vladimir Herzog.


“Stuart Angel iniciou sua militância política na Dissidência Estudantil do PCB da Guanabara, depois denominada MR-8, do qual se tornou dirigente em meados de 1969. Documentos da repressão política o apontam como participante de operações armadas. O relatório do inquérito policial militar (IPM) para investigar o sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick (...) acusa Stuart de participar do sequestro. Os agentes de informação identificam o estudante como 'parte da Frente de Trabalho Armado responsável pelo sequestro do embaixador norte-americano'”, diz o documento, que pode ser conferido pela internet no site memoriasdaditadura.org.br.


O filho de Zuzu Angel morreu após ser torturado por agentes da repressão no Centro de Investigações de Segurança da Aeronáutica (Cisa), na Base Aérea do Galeão, no Rio de Janeiro. O assassinato foi relatado em carta enviada a Zuzu Angel pelo ex-preso político Alex Polari de Alverga.


Relatório da Comissão da Verdade revela que o filho de Zuzu Angel foi torturado para que revelasse o paradeiro do guerrilheiro capitão Carlos Lamarca (1937/1971), um dos líderes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), braço da luta armada contra a ditadura. “Relatos do próprio Polari e de Maria Cristina de Oliveira Ferreira (outra presa política) dão conta de que Stuart foi barbaramente torturado até a morte pelos agentes do Cisa, para que revelasse o paradeiro de Carlos Lamarca – o que não fez”, diz o relato da CNV.


Na carta a Zuzu, Alex Polari relatou que na manhã de 14 de maio de 1971, dois dias após ser preso, Stuart foi colocado no porta-malas de um Opala amarelo e levado para a Base Aérea do Galeão. Afirmou que naquela mesma noite, de uma janela, pôde ver Stuart, “já com a pele semiesfolada”, ser arrastado de um lado para o outro do pátio do Cisa, amarrado a uma viatura e com a boca quase colada a um cano de descarga aberto.


“O Alex Polari contou que ouvia o barulho da aceleração, com o som do engasgo de uma pessoa por aspirar os gases tóxicos. Então, provavelmente, foi ali que a morte dele (Stuart) aconteceu, uma cena aterrorizante”, afirma Nilmário Miranda, que integrou a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) quando era deputado federal.

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