Sophie Charlotte vive pioneira da psicanálise em 'Virgínia e Adelaide'
Longa que estreia nesta quinta-feira (8/5) mostra como o encontro entre duas mulheres alvo de racismo marcou o início da atividade psicanalítica no Brasil
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Siga noDo outro lado do vídeo, o cineasta Jorge Furtado (“O homem que copiava”) pega um caderno de desenhos e o exibe diante da câmera. São esboços de duas mulheres. Perfis desenhados lado a lado, em diferentes posições ao longo das páginas.
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Os retratos representam Virgínia Bicudo (1910–2003) e Adelaide Koch (1896–1980), interpretadas, respectivamente, por Gabriela Correa e Sophie Charlotte no filme “Virgínia e Adelaide”, de Furtado e Yasmin Thayná (da série “Afrotranscendence”). Exibido no ano ado no Festival de Cinema de Gramado, o longa estreia nos cinemas nesta quinta (8/5).
Contudo, antes de virar filme, “Virgínia e Adelaide” seria uma peça teatral. Furtado escreveu o texto, com a intenção de montá-lo, mas a chegada da pandemia interrompeu o projeto. Os desenhos mencionados acima foram esboços criados pelos diretores durante a construção das personagens. “É tudo assim, recortadinho, planejando plano por plano, porque é um filme sobre a psicanálise. É o meio. O lugar da escuta”, diz Furtado.
O longa dramatiza o encontro entre uma mulher negra (Virgínia), professora universitária e pioneira nos estudos sobre racismo no Brasil, e uma psicanalista judia (Adelaide) que chegou ao país vindo da Alemanha em fuga do Holocausto. Esse encontro foi fundamental para o desenvolvimento da psicanálise no Brasil.
Era meados da década de 1930. Virgínia foi até a casa de Adelaide e pediu para ser atendida como paciente. A psicanalista, no entanto, teve reservas. Primeiro, porque não era oficialmente habilitada a exercer a psicanálise no país – ao desembarcar no Brasil, os funcionários da imigração a classificaram como doméstica, sem sequer perguntar sua verdadeira profissão.
O segundo motivo era de ordem pessoal. Adelaide enfrentava a barreira do idioma, que a deixava insegura para atender, além de vir de uma tradição europeia muito distante da realidade brasileira. Contudo, Adelaide cedeu. E, ao atender Virgínia, ou a ouvir relatos de racismo e misoginia vivenciados pela brasileira.
O encontro de fato ocorreu – já os conteúdos compartilhados no divã permanecem desconhecidos, uma vez que o sigilo profissional, em vigor desde então, impede a divulgação de assuntos discutidos no ambiente do consultório psicanalítico.
Histórias espelhadas
Jorge Furtado e Yasmin Thayná transformaram essa aproximação em filme ao perceber a potência histórica e simbólica do encontro entre as duas, que tinham vidas distintas, mas que se complementavam. Ambas defendiam a ciência, enfrentaram o racismo em suas sociedades e se cruzaram justamente num momento em que o Brasil vivia sob os efeitos do golpe de Estado de 1937, quando o governo Vargas ou a flertar com a ideologia nazifascista, a mesma que havia forçado Adelaide a deixar a Alemanha.
Tudo isso é apresentado de forma sutil, nas sessões de análise de Virgínia, que o espectador acompanha como se estivesse no papel de analista, convidado a tirar suas próprias conclusões ao final.
“Tanto Virgínia quanto a Adelaide trabalharam assuntos de muito interesse e tentaram popularizar a psicanálise, elas tinham plena consciência do quão era importante esse aspecto de saúde pública. No filme, trabalhamos isso com as personagens, elas tinham um amor profundo pelo viver”, disse Yasmin, em material enviado à imprensa.
“São histórias espelhadas”, diz Furtado. “A da Virgínia é a história do Brasil. Ela carrega o sobrenome dos donos da fazenda onde o pai nasceu; vê o pai tentar, sem sucesso, se tornar médico; e troca a medicina pela sociologia porque, a exemplo da experiência do pai, sabe que jamais conseguirá exercer a medicina.”
“Do outro lado, temos a única analista existente na América do Sul naquele momento – uma imigrante judia, que chegou ao país pouco antes de ele fechar as portas aos judeus. Essas duas mulheres se encontram e criam uma psicanálise”, afirma.
Juntas, elas criaram o Grupo Psicanalítico de São Paulo – atual Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) –, com olhar voltado para as questões sociais. No entanto, enfrentaram forte resistência do meio médico. Camuflando o machismo sob o argumento de que Virgínia não poderia atuar por não ser formada em medicina, o setor desqualificou o trabalho de ambas.
“O que Virgínia e Adelaide estavam debatendo – e, principalmente, as questões levantadas por Virgínia – era a negligência do Estado e da sociedade diante de problemáticas muito específicas às pessoas negras e às mulheres”, afirma Gabriela Correa.
“É chocante imaginar que as mesmas questões dos anos 1930, 1940 e 1950 continuam tão atuais”, comenta Sophie Charlotte. “Mas a gente precisa trazer à tona essas histórias, porque são duas mulheres que estiveram, de fato, à frente do seu tempo e contribuíram com o nosso país”, emenda.
“Virgínia e Adelaide” destaca a biografia de duas mulheres marcadas pelo preconceito racial e de gênero, sem jamais reduzi-las a isso. Este olhar, presente na direção e no roteiro, resulta numa narrativa afinada com o espírito da própria psicanálise.
“VIRGÍNIA E ADELAIDE”
(Brasil, 2024, 95min.) Direção: Jorge Furtado e Yasmin Thayná. Com Gabriela Correa e Sophie Charlotte. Classificação: 14 anos). Em cartaz no Shopping Contagem, Ponteio e UNA Cine Belas Artes.