Neto de Graciliano Ramos, Ricardo Ramos Filho lança o seu primeiro romance
Três gerações da família do autor de "Vidas secas" e "Memórias do cárcere" mostram talento literário
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Siga no“Aprendi que preciso ser produtivo. Não serei aquele velhinho que terminará a vida pescando, vendo televisão, sentado vendo o tempo ar. Solidão e ócio são para mim coisas muito próximas. Hoje, aposentado, talvez trabalhe mais do que quando atuava no universo corporativo. Tem a ver com me sentir vivo. Invento coisas, procuro ser criativo.”
A declaração feita ao Pensar sobre o entardecer da vida e a necessidade de aproveitá-la de maneira satisfatória é do escritor, produtor cultural e professor de literatura Ricardo Ramos Filho, que acaba de lançar o seu primeiro romance, “Toda poeira da calçada” (editora Patuá), sobre um homem que tem um casamento feliz e se equilibra entre entre o paradoxo do ócio (descanso desejável e produtivo) e da ociosidade (preguiça e inatividade). Mas tudo isso vem abaixo quando chega a pandemia mortal de Covid e, se sobreviver, será preciso reconstruir a vida.
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Embora “Toda poeira da calçada” não seja autobiografia, Ricardo Ramos Filho – que é neto do consagrado Graciliano Ramos (1892-1953) e filho do premiado escritor Ricardo Medeiros Ramos (1929-1992) – ite que o romance é autoficção, mescla fatos e imaginação, e que o protagonista, Rodrigo Ferreira Ferro, é o seu alter ego. Ricardo faz jus à sua linhagem literária com uma narrativa fluida e envolvente.
Rodrigo é um escritor aposentado e casado com Linda, uma mulher produtiva e amável. Os dois filhos adultos já não moram na mesma casa, agora habitada por um casal de gatos, Miau e Beca, sempre a observar tudo de perto O macho é arredio e próximo da mulher, o que desperta até ciúme de Rodrigo, e a fêmea é mais dócil.
Enquanto procura se sentir produtivo, Rodrigo faz reflexão em suas caminhadas pela agitada cidade de São Paulo. “Andar permite dar à paisagem sua verdadeira natureza. Quase estática, as coisas am morosas na velocidade dos os. (…) Preciso me lembrar que estou de bem com a vida”. Ainda não está adaptado ao sossego pleno. Parado no trânsito dentro do carro, ele pensa: “Perdemos a capacidade de estar sentado sem fazer nada e isso é irritante demais. (...) A vida tornou-se impaciente, já não há como postergarmos o momento de sabermos se precisam de nós, e eu precisava que precisassem.
Rodrigo lembra ainda a sofreguidão da produtividade: “Ser profissional significa estar conectado o tempo todo. Andar como se houvesse um fio imaginário no rabo, nos plugando em todas as redes possíveis. (…) Ninguém escreveu, constato entre aliviado e frustrado. Esqueceram de mim novamente.”
Ainda detido no trânsito, Rodrigo observa o mendigo “escangalhado” e o palhaço em busca de dinheiro. “Por que escolhi ajudar o último?”, indaga. “Premiei quem fez rir. O mendigo e sua figura feia me agrediram. Entre a alegria e a tristeza preferi o mais fácil. A imagem escura da meritocracia surge no espelho retrovisor. Classificamos os vencedores assim. Nossa sociedade tão afeita a êxitos. Exatamente, sempre de maneira enviesada”, reflete também Rodrigo enquanto digere uma mea-culpa pelas injustiças sociais.
Freud explica
“A gente a mais tempo infeliz do que de bem com a vida”, pensa Rodrigo em outro momento, diante de um embate com Lívia, a sua terapeuta. “Lívia me informa que Freud percebeu tal dinâmica do comportamento humano muito bem. E escreveu sobre isso. Quer saber se li a respeito. Não li. Psicologia para mim dura apenas o prazo de minhas necessidades. É alguma coisa muito prática, que necessita de voz, interlocução, basicamente pago para garantir cinquenta minutos de ouvidos. Inexiste no cotidiano alguém com disposição para nos escutar por tanto tempo”.
Em suas caminhadas de ócio, Rodrigo descobre um quadro com natureza morta abandonado e leva para casa. A pintura será sua companhia e se transformará numa pequena obsessão: descobrir que é exatamente Ludmila Karpova, a autora da obra. Enquanto isso, o velho professor lembra suas aulas e pinça a poesia de Alberto Caeiro [heterônimo de Fernando Pessoa] na estante: “O luar bate na relva/Não sei que cousas me lembra.../Andava à noite nas estradas/Socorrendo crianças maltratadas.../Se eu já não posso crer que isso é verdade/Para que bate o luar na relva?”. O imponderável o emociona.
Rodrigo também tenta levar a escrita adiante, mas esbarra em outra sofreguidão, um desafio: “Escrever é terrível. Somos prisioneiros de uma vontade que não é nossa. Seria mais adequado encarar o ofício como uma maldição.”
O vírus à espreita
Então, de repente, a vida ao mesmo tempo tranquila e enfadonha de Rodrigo estremece. “A tal enfermidade chinesa ganha manchetes, faz alarde ao começar a espalhar-se pelo mundo. O noticiário informa que logo estará no Brasil. E mata, a infeliz”, exaspera-se. Pior ainda, Linda, sua mulher, está fora, foi visitar o filho na Europa e já não pode voltar por causa do isolamento gerado pela Covid.
O mundo parece desabar, Rodrigo vê amigos e conhecidos perderem a vida em meio ao próprio isolamento, agora implacável. Juntam-se a esse cenário terrível os os largos do tempo sobre a sua idade e outra praga que avança, o fascismo no Brasil e mundo afora. Longe da mulher com o filho que ficou doente e conversando com ela apenas pela internet, vê sua relação conjugal ameaçada.
Mesmo com suas comodidades privilegiadas, Rodrigo sofre com tantas provações, inclusive diante dos menos favorecidos em realidade tão adversa, que o angustia. “Olho toda a poeira da calçada com imenso sentimento de culpa”, pensa. Ele ainda a a ter que cuidar da mãe doente, quer a mulher de volta, que ver os filhos bem, até os gatos estão afetados. Rodrigo parece também querer o seu ócio de volta, um ócio criativo, como diz o sociólogo italiano Domenico De Masi (1938-2023) em seu sugestivo best-seller. Mas o vírus está à espreita.
“Toda poeira da calçada”
• De Ricardo Ramos Filho
• Editora Patuá
• 180 páginas
• R$ 60