Vencedor do Booker Prize, romance 'Orbital' é lançado no Brasil
Ganhadora de um dos mais importantes prêmios literários do mundo, inglesa Samantha Harvey narra dilemas existenciais de seis confinados em uma estação espacial
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Especial para o EM
Não foram os livros de ciência ou as imagens do cinema, nada de Spielberg ou de Kubrick, que despertaram em mim alguma curiosidade com a ideia de espaço, com aquilo que está lá em cima, fora do alcance e ilusoriamente tão perto — uma distância impossível, que conseguimos “medir” com as tentativas frustradas de registrar a lua e sua luz em nossos pobres celulares. Mas as canções de David Bowie. Nelas, os ETs são amantes carentes, descansam como Monalisas futuristas, tal e qual a capa do álbum “Aladdin Sane”,e as estrelas nos observam “por detrás dos seus óculos escuros” (descreve nos versos de “Stars are out tonight”). Na mais famosa de todas, “Space oddity”,o astronauta Major Tom boia na imensidão sobre nós. Parece um bebê numa placenta, aguardando a hora certa para ser lançado, não para os braços ansiosos da mãe, e sim para bem longe. Uma odisseia em que a Penélope sabe de cara que a espera será vã.
Da sua antessala espacial, Major Tom suspira que “O Planeta Terra é azul e não há nada que eu possa fazer”. Obluedo original em inglês soa indeciso entre ser cor ou a tristeza daqueles que sabem que não têm mais para onde voltar.
Foi a fixação por David Bowie que me guiou até“Orbital”, da escritora inglesa Samantha Harvey, romance ganhador do Booker Prize, lançado agora com tradução de Adriano Scandolara, pela Editora DBA. Temos seis astronautas — quatro mulheres e dois homens —, de nacionalidades diversas, para dar a impressão de uma divisão igualitária do saber, durante uma missão espacial.
Acompanhamos a descrição dos seus afazeres por nove meses (o tempo que leva para uma nova vida ser gerada no planeta que, visto de longe, parece merecer de fato a alcunha de Planeta-Mãe). Sabemos os pormenores dos exercícios que fazem para preservar os músculos numa realidade sem gravidade. Dividimos os resultados dos seus testes de saúde e compartilhamos as notícias das tragédias que acometem os que ficaram para trás. Uma dasastronautas é avisada do falecimento da mãe durante a missão. Mas o que fazer quando a morte é a realidade de um planeta lá longe? É possível só observar uma perda tão radical e ainda assim ganhar tempo para sofrer depois? Harvey trata seus personagens menos como cientistas ávidos por descobertas e mais como pacientes numa longa sessão de terapia.
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Enquanto boiam no espaço, observam as cores dos continentes e o rastro da humanidade, que só dá pistas da sua existência quando anoitece, e as luzes distantes são acesas. Mas serão os únicos com o privilégio de observar o espetáculo terrestre, como celebridades encurraladas numa área vip? “Alguma civilização alienígena poderia observar e perguntar: o que estão fazendo aqui? Por que não vão a lugar algum e ficam só dando voltas e mais voltas? A Terra é a resposta para todas as perguntas. A Terra é a face de uma amante em êxtase; eles a observam dormir e acordar e se perdem nos seus hábitos. A Terra é uma mãe esperando os filhos voltarem, cheios de histórias, arrebatamentos e saudades”, descreve a autora.
Os astronautas de Harvey não parecem muito diferentes da tia-avó do narrador de “Em busca do tempo perdido”, de Marcel Proust. Depois da morte do marido, tia Léonia decidiu engrenar o luto com alguma perspectiva de doença e nunca mais saiu de casa. ou a observar o mundo nos mínimos detalhes pela janela que entrevê do seu leito. Atenta, sabia mais do que se ava na sua cidade do que aqueles que estavam lá fora, trabalhando, andando, úteis para os afazeres diários. Trocou a vida pela observação da vida. Ser um voyeur da Terra girando, será que é isso o que são todos os astronautas? Será que é assim que preferimos viver agora, agarrados com as nossas preciosas telas?
Ciente da beleza trágica do olhar de quem só observa, “Orbital” é também uma excelente descrição do que foi o mundo durante a pandemia de covid, para os que tiveram, claro, o luxo de ficar em casa. Todo aquele tempo vivido apenas olhando pelas janelas ou pelas "janelas" das telas, enquanto o planeta parecia seguir sua trajetória implacável, suas estações do ano, indiferente à nossa presença. Volto a Bowie e ao seu “O Planeta Terra é azul e não há nada que eu possa fazer”. E complemento com Harvey: “Os dias am voando. Cada um ficará aqui uns nove meses, mais ou menos, nove meses à deriva sem gravidade, nove meses com a cabeça inchada, nove meses morando numa lata de sardinhas, nove meses olhando a bocarra escancarada da Terra, e depois voltarão ao planeta paciente lá embaixo”.
É irônico que “Orbital” nos chegue agora, logo depois do turismo espacial de onze minutos vivenciado por uma tripulação de celebridades com nomes como o da jornalista Lauren Sanchéz, noiva do bilionário Jeff Bezos, e da cantora pop Katy Perry, que aproveitou a missão para divulgar o set list da série de shows que faria pelo planeta que a aguardava lá embaixo. É oficial: os vips já tomaram o lugar do Odisseu Major Tom. Depois dessa desastrosa missão espacial, típica do fascismo das redes sociais, a solidão espacial dos astronautas de “Orbital” parece até anacrônica. Pode, assim, ser lida mais como ficção científica, como prosa de fantasia, do que como investigação científica. E obluede“Space oddity” ficou ainda mais indeciso entre o azul e o triste.
SCHNEIDER CARPEGGIANI é jornalista, doutor em teoria literária e editor na Editora Autêntica.
“Orbital”
(Trecho do livro de Samantha Harvey, com tradução de Adriano Scandolara)
“É uma coisa estranha, pensa ela. Todos os sonhos de aventura, liberdade e descoberta culminam na aspiração de virar astronauta, e aí chegar aqui e ficar presa, ar os dias pondo e tirando as coisas do lugar, mexendo num laboratório com mudas de ervilha e raízes de algodão, e não ir a lugar nenhum, só dando voltas e mais voltas, com os mesmos pensamentos dando voltas e mais voltas junto.
Não é uma reclamação. Por Deus, não é uma reclamação.
Não fique em cima de ninguém, é a regra tácita entre todos. Espaço pessoal e privacidade já estão em falta, com todos ali presos uns com os outros, respirando o mesmo ar do outro, excessivamente reutilizado durante meses a fio. Não atravesse o rubicão para se intrometer na vida interna do outro.
Há essa ideia de uma família flutuante, mas, de certa perspectiva, eles não são nem um pouco uma família — são, ao mesmo tempo, muito mais e muito menos do que isso. São tudo um para o outro durante esse breve período de tempo, porque são tudo que há. São companhia, colegas, mentores, médicos, dentistas, cabeleireiros. Nas caminhadas espaciais, lançamentos, reentrada, nas emergências, eles são a rede de apoio um do outro. São, uns para os outros, representantes da raça humana — cada um deles precisa ser suficiente para representar bilhões de pessoas. Precisam improvisar para substituir todas as coisas terrenas — famílias, animais, clima, sexo, água, árvores. Caminhar. Há dias em que eles só querem caminhar ou deitar. Não fique em cima de ninguém, é a regra tácita entre todos. Quando sentem falta das pessoas e das coisas, quando a Terra parece tão distante que a depressão se abate sobre eles durante dias e até mesmo a visão do pôr do sol no Ártico não basta para animá-los, então precisam conseguir enxergar o rosto dos outros a bordo e encontrar algo para impulsioná-los a seguir em frente. Algum consolo. Nem sempre dá.”
“Pastoral espacial”
“Eu queria escrever sobre a ocupação humana da órbita da Terra no último quarto de século – só que não como ficção científica, mas de uma forma realista. Será que eu conseguiria evocar a beleza daquele ponto de vista com o mesmo apuro de alguém que escreve sobre a natureza e realizar uma espécie de pastoral espacial? Conseguiria escrever sobre esse espanto e esse deslumbre? Estes foram os desafios que me propus.”
“Queria olhar para a Terra como se fosse uma pintura.”
Samantha Harvey
autora de “Orbital”, em entrevista ao jornal português “Público”
“Orbital”
• De Samantha Harvey
• Tradução de Adriano Scandolara
• DBA Editora
• 192 páginas
• R$ 74,90
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