'NATUREZA TRANSFORMADA'

Exposição analisa relação de 'sequelas' da urbanização em cidades como BH

Casa Fiat é sede de exposição de trabalhos de Márcia Xavier e da dupla Mariagrazia Abbaldo e Paolo Albertelli

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Guilherme Wisnik

Especial para o EM

Belo Horizonte é uma cidade planejada, construída por meio de uma grelha de ruas ortogonais e diagonais, que desconsiderou a topografia acidentada do sítio em que se implantava, assim como os vários cursos d’água que o atravessam. Hoje, esses rios e córregos, quase todos tamponados, são presenças escondidas na cidade, que volta e meia se fazem relembrar na violência das inundações, com a força física e simbólica das enxurradas, nas quais retornam como recalcados.


A vasta urbanização do planeta, baseada na construção extensiva com cimento, na impermeabilização do solo com asfalto, e na locomoção motorizada a partir da queima de combustível fóssil não renovável, representou uma espécie de “pacto fáustico” da modernidade. Isto é, a crença prepotente de que o desenvolvimento trazido pela técnica industrial seria infinito e apenas benéfico. Ocorre que hoje, diferentemente, estamos na ponta final desse processo, podendo perceber mais claramente a sua face inconsequente, destrutiva e suicida. O momento em que o pacto vai ser cobrado, e os custos estão sendo postos na balança.


Não por acaso, foi em Belo Horizonte que surgiu, em tempos recentes, um projeto artístico muito potente, e que enfrenta essas questões. Refiro-me ao trabalho “Sobre o rio”, de Isabela Prado, contemplado com um edital de fomento da Prefeitura. Uma intervenção urbana de caráter permanente, que, a partir de 2020, instalou mais de 200 placas de rua dentro do perímetro da Avenida do Contorno, indicando as bacias hidrográficas presentes ali subterraneamente. Poética e informativa, a intervenção ajuda as pessoas a se reconectarem com essas presenças invisíveis – os rios escondidos –, trazendo-as de volta ao cotidiano alienante da experiência urbana.


A arte não é uma atividade que tem por missão resolver problemas concretos da sociedade, não devendo ser instrumentalizada. Mas, de fato, ela pode, muitas vezes, ser vivida como um meio de sensibilização das pessoas para questões latentes no nosso mundo, evidenciando sentimentos ocultos ou difusos. É o que procuramos fazer na exposição “Natureza transformada: atravessamentos espaciais na Casa Fiat de Cultura”. Trata-se de uma mostra que reúne conjuntos de trabalhos dos artistas italianos Mariagrazia Abbaldo e Paolo Albertelli, e da brasileira Márcia Xavier. Ainda que formalmente distintos, seus trabalhos elaboram a questão da transformação da natureza em matéria processada pela mão humana e pela indústria, alertando-nos sobre a fragilidade daquilo que chamamos de “recursos naturais”.


Realizando desenhos de paisagens e esculturas de ferro cortadas a laser, Mariagrazia e Paolo tensionam o espaço neutro do edifício cultural, querendo desconstruir o chamado “cubo branco” da galeria expositiva. Assim, árvores de ferro brotam das paredes da caixa de escadas, como se invadissem o espaço de fora para dentro, de forma sinistra, ou surrealista. Além disso, buracos nos painéis de madeira revelam as janelas escondidas atrás deles, junto à luz do dia, que se transforma numa espécie de backlight para esculturas delicadas, entrevistas pelo público como se fosse em um caleidoscópio de criança.

leo fontes/divulgação


Ainda, em uma performance participativa com estudantes de escolas da cidade, na laje de cobertura do edifício, construíram com pedras um imenso desenho de um manguezal. E como a laje é inível ao público, um trabalho em vídeo transmite a performance aos visitantes da mostra, junto a um gotejamento permanente, que parece vir de lá de cima, como se a água usada naquela experiência transbordasse, agora, para o espaço expositivo, tornando visível aquilo que era apenas uma ideia. Retorno cíclico, que nos recorda a ideia de recalque, mas agora em outro plano.


Já Márcia Xavier trabalha com fotografias e espelhos, em permanente interação com a água. Em um ambiente todo reflexivo, chamado por ela de “elevador”, o visitante se vê refletido entre imagens de uma foto aérea da área central de Belo Horizonte, na qual o Ribeirão Arrudas aparece ainda aberto, embora canalizado. A impregnação vermelha da foto dá um caráter sanguíneo à imagem, situada acima das nossas cabeças, mas refletida no chão em que pisamos, e multiplicada nas paredes laterais, junto à presença intrusiva dos nossos corpos.


Em outros trabalhos, feitos com garrafas de vidro preenchidas por água, a artista cria diáfanos penetráveis que dividem o espaço, turvando a percepção que temos dele. Ou, ainda, cria ilusórias linhas do horizonte atrás dos líquidos, em uma brincadeira com o nome da cidade, em que relativiza nossa capacidade de criar planos, divisar futuros e nos engajarmos em projetos edificantes por meio da razão.


Transformação e atravessamento são palavras-chave nessa exposição. Na conjunção entre as produções de Márcia Xavier e da dupla Mariagrazia Abbaldo e Paolo Albertelli, a fragilidade da vida humana é confrontada com a perenidade dos minérios e dos espelhos, porém, paradoxalmente, numa época em que toda essa noção de perenidade vai sendo corroída por dentro. Sem a possibilidade de invocar horizontes belos, somos instados a imaginar outros caminhos para nosso futuro. Talvez mais erráticos e sinuosos, oníricos e orgânicos.

Guilherme Wisnik é curador, arquiteto e professor da FAUUSP

leo fontes/divulgação


“Natureza Transformada: atravessamentos espaciais na Casa Fiat de Cultura”
• Exposição de trabalhos de Márcia Xavier e da dupla Mariagrazia Abbaldo e Paolo Albertelli
• Visitação, até 8/6, de terça-feira a sexta-feira das 10h às 21h; sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h (exceto segundas-feiras). Entrada franca
• Na próxima terça (20/5), às 19h, bate-papo “Os rios e as cidades” com o curador Guilherme Wisnik, Márcia Xavier e a convidada Isabela Prado, artista visual e autora de “Sobre o rio”

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