Livro retira as máscaras da violência imperial
Em 'História potencial', a cineasta e curadora de arte Ariella Azoulay alerta para a perigosa armadilha de reconhecimento da violência institucionalizada
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Especial para o EM
Qual é o sentido de arquivos e feitos históricos realizados por agentes imperiais? No romance “Detalhe menor”, de Adania Shibli, a narradora é uma jornalista que investiga o desaparecimento de uma garota beduína, violentada e assassinada em 13 de agosto de 1949, uma no depois da Nakba, a catástrofe. Intrigada, a jornalista vai atrás de mapas, arquivos e museus resguardados pelo Estado de Israel. Nasua peregrinação por fontes e documentos, ela é revistada, atravessa check points, testemunha um território ocupado, procura um corpo desaparecido, uma voz perdida no tempo.
É possível coletar histórias que não foram narradas nem estão arquivadas? Cineasta e curadora de arte, Ariella Aïsha Azoulay, autora de “História Potencial: desaprender o imperialismo”(Ubu), também busca sentidos análogos à trajetória e à vida daquela jovem beduína. Ariella, contudo, adverte que não é possível confiar nos arquivos ados, oficializados por colonizadores, já que suas narrativas vieram das “ordens mais atrozes contra vastas populações”, de ordens que pretendiam “matar, escravizar, estuprar, humilhar, deslocar, desterrar, expulsar, destruir casas, bombardear abrigos, confiscar ou espoliar”.
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Mundos despossuídos, nos dizem Adania e Ariella, são sedentos por narrativas. Filha de um argelino judeu e neta de árabe, Ariella se alinha a uma tradição que realça eventos descontínuos como uma marca dos acontecimentos históricos. Nessa toada, Walter Benjamin, Michel Foucault, Aby Warburg, Nietzsche e Giorgio Agamben apontam a relevância de fatos à margem dos acontecimentos hegemônicos. Ariella, porém, alerta que boa parte desse viés de descontinuidades não dá a devida importância ao ato fundador da violência imperial.
Na narrativa imperial há sempre um antes e um depois. Tome as datas que se referem a marco zeros. 1492, 1830, 1947. Como se antes dessas catástrofes e violências inaugurais, houvesse somente vestígios de uma pré-história, de acontecimentos derrotados ou apagados. Achegada de Cristóvão Colombo nas Américas, as revoluções na Europa, a Nakba, e até a invenção da fotografia mascaram uma destruição imperial, como se conduzissem a história adiante, rumo a um falacioso progresso.
Inspirada em Hannah Arendt, Ariella chama a atenção sobre a proeminência de desmantelo de mundos protagonizados pela violência imperial. “Depois que o mundo de um povo é destruído – ela afirma – diferente sem preendedores aproveitam a oportunidade, oferecendo a promessa de novos começos para instigar as pessoas a completar a destruição de sua vida comum por vontade própria”. Se não é possível um regresso a um instante anterior, tampouco se deve aceitar que haveria apenas um depois dessas violências fundadoras.
O Brasil contemporâneo oferece um exemplo incômodo. Basta espiar como STF e o Congresso Nacional disputam a régua do chamado “marco temporal”, referente a um abstrato como histórico que regula a demarcação de terras indígenas. A despeito das etnias e comunidades indígenas terem tido seus territórios e mundos espoliados após a chegada dos horrores coloniais, essas mesmas sociedades ainda precisam lidar com uma cronologia que lhes é violentamente imposta pelo STF, o Congresso Nacional e até mesmo o executivo.
Persistente, Ariella desmonta os privilégios imperiais vindos das tecnologias históricas que manejam o arquivo. A violência do arquivo repercute nos objetos de arte, nas manipulações espaço-temporais da fotografia, nas técnicas de constituição de acervo e memória, perpetradas pelos museus, e no modo como os historiadores estabelecem uma linha divisória entre narradores do ado, vinculados a instituições de origens imperiais, e seus espectadores. São mundos invadidos, “apropriados” e destruídos.
Objetos de arte, como fizeram os belgas com suas coleções espoliadas de populações e comunidades do Congo, instituem uma brutal diferença, a gramática de uma cena, forjada entre povos roubados. São, em poucas palavras, sociedades fundadas na pilhagem e numa perversa museificação, revestida de preservação da memória, obtidos a partir de infindáveis copyrights, duras regras de propriedade intelectual, que dominam a narrativa de histórias futuras.
Para Ariella, existem fotografias tiradas, mas também fotografias não tiradas, ou fotos inalcançáveis, que representam eventos potenciais e futuros. No capítulo dedicado à história potencial, o termo ‘fotografias não tiradas’ é o resultado de um processo de desaprender a fotografia como um conceito e uma prática redutíveis às fotos; ou seja, uma tentativa de substituir as supostas ausências, controladas por uma das partes no evento fotográfico, por potenciais presenças.
Ao convocar as fotografias não tiradas, Ariella relata, num exemplo que não consta na edição brasileira, o caso dos estupros realizados por soldados norte-americanos com alemãs, nas ruínas da segunda guerra mundial. A falta de imagens e de documentos “comprobatórios” desses estupros, em massa e coletivos, não pode ser sinônimo de uma ausência factual. De mãos dadas com Saidiya Hartman, que se fia na ficção para aguçar a percepção de histórias inexistentes em arquivos, Ariellafabula para avivar, aos seus leitores, as imagens dessas fotografias não tiradas.
Irrequietos com a violência do arquivo, e críticos da concepção de um arquivo totalizante, vinda de Derrida, vários historiadores já vêm construindo uma rede de discursos similares, valorizando testemunhos, relatos verbais, memórias comunitárias. Em “História potencial”, a diferença reside na maneira como se aguça a imaginação histórica para escutar e amplificar tantas vozes silenciadas. Ariella rejeita a presunção acadêmica de apenas explicar o que de fato aconteceu para vislumbrar aquilo que poderia ter sido evitado, que nunca deveria ter sido possível, que não era para ter acontecido. Nesse prisma, o ado torna-se um convite a outros futuros, que inclui a ação das comunidades.
Diante da reparação, tema central aos debates de coloniais contemporâneos, Azoulay alerta para uma perigosa armadilha de reconhecimento da violência institucionalizada, no sentido de um perdão possível. Ainda que defenda o direito o retorno dos objetos furtados pelas violências colonizadoras e imperiais, Ariella reitera a necessidade de uma constante pergunta sobre o que seria esse trabalho de reparo. Ela afirma que é “mediante a potencialização da história que o trabalho das reparações pode suscitar a recuperação de um mundo compartilhado de cuidado comum”. Um direito básico de co-habitação e partilha de mundo, um ato de imaginação – e de coragem, eu agregaria – que nos permita uma esfera política diferente, que tornaria imperdoável “a violência que foi institucionalizada como um desastre causado pelo regime”.
A recuperação de mundos convoca a uma série de interrupções e até mesmo de greves, como Ariella reivindica na versão original do livro, conclamando trabalhadores de museus, fotógrafos e historiadores a pararem suas colaborações com as violências imperiais. Ariella é ciente do seu lugar institucional, dos privilégios de ser uma autora alocada numa rica universidade estado-unidense. Embora a sua pauta seja certeira e urgente, é curioso como ela parece incidir mais numa desconstrução de uma certa epistemologia eurocêntrica do que em propostas mais efetivas de formas de retorno dos mundos e das comunidades. Aliás, todo o seu diagnóstico de colonial já parece ser colocado em prática por pensadores e ativistas contemporâneos, vindos de significativas intervenções ameríndias e afrobrasileiras, como Ailton Krenak,Nêgo Bispo, Davi Kopenawa, Sueli Carneiro e Kalaf Epalanga.
Em “A garota negra” (1966), filme clássico do diretor senegalês Ousamane Sembène, a jovem Diouna vai até a Riviera sa para trabalhar como babá, e nem salário ela recebe. Ao viver vários conflitos e ser vítima de um racismo arraigado, Diouna não dá conta, e morre. Quando migrou, ela levou uma máscara da sua comunidade. Depois da morte da Diouna o homem francês que a trouxe viaja até Dakar para devolver junto com a mala de Diouna, seus poucos pertences e um pagamento. Orgulhosa, arredia, a mãe de Diouna refuta qualquer compensação monetária. Sem dizer uma palavra sequer, ela é avessa aos gestos de reparação. Na sequência final, a máscara é retomada por um menino da comunidade, que não só a veste, como, enfeitiçado, persegue o homem branco, o agente da violência imperial. Ao reavivar a máscara nos seus possíveis rituais comunitários – ao rejeitar que ela se reifique como um objeto de arte, uma foto, uma peça de museu – a máscara, rente ao rosto do menino, é um dos mais comoventes atos do fulgor da história potencial.
PABLO GONÇALO é professor universitário, crítico de cinema ecineasta
“História potencial: desaprender o imperialismo”
De Ariella Aïsha Azoulay
Editora Ubu
272 páginas
R$ 62