
Do balcão de uma caupona em Pompeia ao balcão de um boteco na esquina
Bar, boteco, "copo sujo" — ou botequim, como ainda se chama em muitos lugares — não é só ponto de venda de comida e bebida, é lugar de convívio
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Abril é mês de Comida di Buteco em Belo Horizonte. O concurso, criado na cidade em 2000, hoje se espalha por diversas capitais brasileiras e atrai muita gente aos bares participantes. Os balcões se enchem, as calçadas fervem, os petiscos ganham nomes criativos. Mas, em meio à animação, tem algo que me chama atenção: alguns desses bares permanecem como espaços de resistência e de diálogo com a rua. Continuam firmes, mesmo diante da gourmetização ou da gentrificação de bairros que tentam empurrar o popular para longe.
Bar, boteco, “copo sujo” — ou botequim, como ainda se chama em muitos lugares — não é só ponto de venda de comida e bebida, é lugar de convívio. Espaço de sociabilidade, de trocas informais, de trânsitos múltiplos entre o trabalho e o lazer, o conhecido e o desconhecido.
A historiadora Leila Algranti, ao analisar o Rio de Janeiro do início do século 19, permite compreender como esses espaços, além de zonas de circulação e convivência, eram tratados pelas autoridades como ameaça à ordem pública. Frequentados por escravizados libertos e trabalhadores urbanos, eram alvo constante da polícia. As rondas noturnas, os horários de fechamento e as multas visavam impedir “ajuntamentos de ociosos” — expressão usada para nomear, sobretudo, os encontros de pessoas negras em espaços públicos. Os registros sugerem que o controle da ordem pública vinha acompanhado de tentativas de limitar presenças e restringir formas legítimas de convivência.
Dois séculos depois, ainda podemos perceber sinais de incômodo com essa sociabilidade. No entanto, nos cerca de 15 bares que visitei nesta edição do concurso, encontrei traços claros dessa importante presença popular. Gente que se conhece pelo nome, que troca notícia antes de escolher o prato e espera a comida sem pressa, como quem está em casa. Não é o tipo de cena que aparece em material de divulgação ou roteiro turístico, mas sustenta o funcionamento do lugar. Entre uma porção e outra, organiza-se um modo de viver junto — menos sobre o prato que chega à mesa, mais sobre quem está ali.
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A presença de espaços dedicados à alimentação e à convivência pode ser mais antiga — e persistente — do que imaginamos. Em Pompeia, cidade do Império Romano soterrada pela erupção do Vesúvio no ano 79 d.C., arqueólogos identificaram dezenas de tavernas espalhadas pelas esquinas. Uma das muitas pinturas de parede preservadas mostra uma cena corriqueira: pessoas reunidas em torno da comida e da bebida, num ambiente aparentemente popular e ível. Paul H. Freedman descreve esse cenário como um convivium plebeu, vivido em uma caupona — espécie de bar ou taberna —, revelando que, mesmo ali, já se expressavam sentidos coletivos da comida e a importância de comer junto.
Em 60 das 95 esquinas escavadas em Pompéia, havia registros de espaços como bares ou tavernas. A lógica da comida como ponto de encontro atravessa séculos. Ultimamente, alguns bares emergem tentando reproduzir essa estética popular: azulejo antigo, copo lagoinha, porção de torresmo, cardápio com referências ditas “afetivas”. Mas talvez falte o que não se compra: as relações que dão sentido ao lugar. Alguns podem até simular o cenário, mas não conseguem inventar o vínculo. O bar popular não se explica só pela decoração, pelo espaço, mas principalmente pela trama de relações que organiza seu cotidiano. Há diferença entre servir comida supostamente simples e viver uma cultura de partilha.
Em tempos de reformas urbanas que empurram os bares tradicionais para fora dos mapas supostamente valorizados, resistir no balcão virou quase um ato político. Defender o boteco não é sobre nostalgia: é reconhecer a importância de espaços íveis, vivos, que ainda sustentam vínculos e práticas coletivas. E, como se não bastasse, a comida geralmente é boa, a bebida vem no ponto, o atendimento não falha e o chão costuma brilhar. Ode aos botecos populares.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.